ASSUNTO IMPORTANTE
Aline Toledo

Sabe quando o som do despertador parece fazer parte do sonho e você bate nele para continuar sonhando?

Pois é, eu não vou trabalhar hoje, mas esqueci de desligar o despertador e ele ficou bem no meio do meu sonho. Eu não iria levantar por nada neste mundo se o telefone, num complô com o despertador, não tivesse tocado também.

Tive que atender.

Era ela, dizendo que queria conversar sobre uma coisa muito importante.

- Pode falar.

- Você está acordado?

- Claro, você acabou de me acordar.

- Por que você é sempre tão grosseiro?

- Mil desculpas, minha rainha, soberana, inatingível, intocada, mistura de santa e...

- Pára com isso. Me escuta pelo menos uma vez na vida.

- Pode ser daqui a pouco? É que acabei de acordar e meu cérebro ainda não começou a funcionar perfeitamente. Conhece alguém que também é assim?

- Por favor, é sério.

Sento na cama e esfrego os olhos.

- Tudo bem. Estou prestando atenção. Mesmo.

- Não vou falar por telefone. Precisamos nos encontrar.

Começo a perder a paciência, mas percebo que a coisa é séria.

- Você quer que eu passe na sua casa hoje à noite?

- Que horas?

- Melhor. Vou buscar você no serviço. Você vai sair no horário de sempre?

- Vou. Combinado.

Desligamos depois que ela falou mais algumas coisas enquanto eu fingia que estava escutando atento, mas, naquela hora da manhã, era exigir muito.

Não consegui mais pegar no sono. Levantei minutos depois com uma preguiça tamanha que mal conseguia colocar a pasta de dente na escova.

Que coisa! Por que ela tinha que ligar tão cedo? E ainda não dava para falar por telefone: tinha que ser pessoalmente. Comecei a ficar preocupado. Devia ser algo bem importante mesmo. Mas como eu queria continuar dormindo! Tinha certeza de que passaria o dia inteiro com sono. Justo o meu - merecido - dia de folga.

Estava sonhando com ela. O que era mesmo? Por mais que me esforçasse não conseguia lembrar.

O dia passou arrastado. Lógico: não fiz nada de útil. Fiquei à-toa o tempo todo. Até a noite. Até a hora de ir buscá-la no trabalho.

Enquanto dirigia, tive uma intuição. Ela queria terminar o namoro. Não, ela queria casar e, se eu desconversasse (o que de fato eu faria), ela diria que preferia terminar o namoro a continuar, depois de tantos anos, na mesma coisa de sempre. Por que eu não a assumia de vez? Perante a família, os amigos, o mundo? Conhecendo-a tão bem até já sabia as palavras que ela iria usar.

Um cachorro passou na frente do carro e eu freei bruscamente.

E se ela estivesse grávida? Aquela noite, aquela noite que a camisinha estourou. Comecei a vasculhar meu cérebro à procura de algum indício. Ela estava diferente mesmo. Nos últimos dias, o rosto dela se iluminava mais do que o normal quando ela sorria. Mais gordinha. Mais redonda. E aquela vontade súbita, no fim de semana, de comer torta de queijo? Torta de queijo que ela odiava e, de repente, queria mais do que tudo.

Estacionei o carro em frente ao escritório e não tive coragem de descer em seguida. Fiquei muito tempo olhando em frente, sem enxergar nada, só uma nuvem de dúvidas encobrindo meu pensamento. Uma criança. Ser pai tão cedo não estava nos meus planos. Bom, não era tão cedo assim. Eu já morava sozinho. Profissão estabilizada. Terminando a pós-graduação. Quantos anos de namoro? Bom, não precisava ter casamento. Ou precisava? Não deve ser tão ruim assim. O Ricardo parece feliz com a Adélia. E o Rubens, o Márcio, o Alfredo? Tem ainda o Carlos. Não, o Carlos não conta: nem jogar bola ele vai mais. Agora, para a criança, é melhor que os pais estejam casados, vivendo harmoniosamente. Viver harmoniosamente com ela? Impossível. Só que um filho, com a minha cara, era coisa para parar e pensar. A minha cara. Mas os olhos e o sorriso dela. Ah, o sorriso dela. Tanto faz menino ou menina. A minha cara, com os olhos e o sorriso dela. Perfeito.

Ela já devia estar batendo no vidro do carro há um tempão quando abri a porta.

- O que você precisa dizer de tão importante?

- Vamos com calma. Que tal jantar naquele restaurante ...

- Não, pelo-amor-de-Deus! Fala agora ou você me mata.

- Estou com fome. Vamos conversando no caminho.

- Tudo bem. Pode falar. Estou prestando o máximo de atenção. Ao contrário de você, consigo dirigir e conversar ao mesmo tempo.

Ela ri e bate no meu braço.

Falei só para descontrair. Não vou agüentar chegar no restaurante.

Tive que agüentar. O caminho inteiro praticamente em silêncio.

Estou com tanto sono e tanta preguiça que não consigo mais dirigir direito.

Paro o carro. Sem se mover, ela começa a falar.

Agora que chegamos no restaurante ela não quer descer. Vai falar ali mesmo. No carro.

- Você não acha que namoramos há um bom tempo? Que nos conhecemos o suficiente?

- Claro. Eu queria mesmo conversar com você sobre isso.

- Conversar sobre o quê?

- Sei lá ... Como eu moro sozinho, sabe?

- Não, não sei.

- Como eu moro sozinho, se você quiser ... mudar lá para casa ... levar as suas coisas.

Ela engole seco.

- Levar as minhas coisas?

- É. Todas as suas coisas.

- Todas? Até a vela perfumada que você diz que ataca sua rinite alérgica?

- Lógico.

- E a Lila?

- Não, gato não.

- Não fala assim.

- Por causa da minha rinite. Sabe o pêlo?

- Ah, a Lila gosta tanto de você. Não é no colo de qualquer um que ela vai. E você não espirra tanto assim quando ela está perto.

- Pode ser. Vou pensar.

- Agora, esse negócio de morar junto, meus pais não vão aceitar. Tem que ter casamento na igreja, de papel passado e tudo.

- Papel passado?

- É.

- Na igreja?

- É.

- Tanto tempo que eu não entro numa igreja a não ser quando a gente viaja naquelas excursões ...

- É meu sonho. Entrar toda de branco na igreja. Não precisa ser toda de branco. O vestido pode ter uns detalhes em azul ou ...

- Você nunca me disse que casar direitinho era importante para você.

- É que eu achava que você não iria concordar.

- Não mesmo.

- Não?

- Quer dizer, uns tempos atrás, não. Agora é diferente. A gente se conhece o suficiente.

- Você acha?

- Acho.

Os olhos dela estão marejados.

- Sabe, quando telefonei de manhã, achei você tão insensível. Pensei em colocá-lo na parede. Se você não quisesse casar, eu iria embora.

- Você iria terminar o namoro?

- Acho que sim. Continuar, depois de tantos anos, na mesma coisa de sempre. Por que não me assumir de vez? Para a família, os amigos ...

- O mundo.

- É, eu queria que você me assumisse perante o mundo.

- É só isso?

- Só isso? Você não sabe o quanto significa.

Ela não está grávida.

- Eu preferia que você tocasse no assunto, me pedisse em casamento. Mas achei melhor tomar a iniciativa. Já vim preparada para você desconversar. Aí, não iria agüentar. Preferia terminar o namoro.

- Não, de jeito nenhum ... Não posso viver sem teu sorriso ... Você está tão bonita hoje. O rosto. O corpo. Corpão.

- Você acha que eu engordei?

- Não, claro que não.

- É, você tem razão, estou meio inchada. É que minha menstruação desceu hoje... E eu nem fiquei tão irritada como de costume. Bom, estou um pouco chata, sim. TPM é um saco.

É, ela não está grávida mesmo.

- Você está linda ... A gente pode casar em setembro. O que você acha?

- Ótimo. É um mês maravilhoso.

E os filhos? Como eu vou tocar nesse assunto? Ela vai falar que vai atrapalhar a carreira dela. Justo agora que ela foi promovida e está se acertando no cargo. Nosso filho pode ficar para mais tarde.

- O que você acha?

- Do quê?

- Um filho?

- Um filho? Acho perfeito, mas depois. Agora, estou me acertando na empresa.

- É, eu sei.

Vontade de fugir. Será que amanhã posso dizer que pensei melhor e não quero me amarrar agora? Não, eu quero casar com ela. Quero mesmo. Mesmo com tanto sono e preguiça, não tenho dúvida: quero casar com ela.

Vestido de noiva prateado. Era isso que eu estava sonhando quando o despertador tocou! Ela estava entrando com um vestido prateado na igreja. E eu, ansioso, no altar.

Do jeito que é, ela vai atrasar muito. Tenho certeza.

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