AH, SE EU PUDESSE!
Adilson Sobrinho

Voltei a ser amargo após tanto tempo de chuvas aguando os meus secos dias. Não mais quero saber de pizzas 4 queijos, elas hoje tem sabor de dor. Dores também são providas de sabores: amargos, azedos e fel.

Minha cozinha, embora tão bem decorada, também perdeu a luz; meus quadros na parede já não me dizem mais nada, mesmo tendo sido eu o autor desses emaranhados de cores.

Escrever? Essa secura dos meus dias me arrancou montes de motes, as palavras não fluem e os pensamentos não movem magicamente minhas mãos, até os que existem não fazem por merecer a brancura do papel.

Quero ir ali, ou mesmo só sair daqui, estou seco, estou amargo, verdadeiramente amargo, os sons que me chegam não mais se fazem música, seria este o estágio final? A ante-sala do inferno? Ou são apenas dias, aqueles dias, em que rogamos em alto e bom som: Ah, se eu pudesse estar agora na Korea vibrando com os dribles e gols de Romário!

Não, definitivamente não seriam as pernas malemolentes do craque que me trariam de volta a leveza e o prazer do simplesmente estar vivo. Xô! Baixo astral, ou mais cientificamente, xô! "crise existencial". Quem sabe a música de Djavan não me retorne a doçura dos versos que agora preciso? Ou Adélia, proseando comigo não me mostraria em poesias precisas e fatais o quanto é saboroso o cigarro pós sexo?

Prazeres são muitos, pudesse, quem dera pudesse, desfrutá-los todos de uma só vez, vivendo com isso a véspera de minha morte?

Ah, se eu pudesse, como um garoto levado, fazer um xixi na horta do vizinho deplorável! Quebrar todos os cd's daquela dupla que me irrita e me enlouquece! Quem dera eu pudesse pichar os muros da cidade com mensagens de repúdio à brancura química de Michael Jackson ou até assumir, publicamente, a minha admiração por Sadan Hussein.

São sonhos, pequenos pedacinhos de meus desejos de felicidade... Ah, se eu pudesse!

Acordo bêbado de auto-piedade e nada pude.

Reencontro as contas por debaixo da porta, o irritante ruído da panela de pressão, uma conexão que não para de pé e, sempre no melhor da conversa, travo, empaco, caio. E como se fosse possível e se eu pudesse, queria ser Caio, Caio Fernando Abreu, poeta, mago. Aquele que sabia o sopro certo para espantar negras nuvens.

Tudo isso passa, são só momentos, claro que queria apressar suas idas, mas para isto não tenho lá muito poder. Ah, se eu pudesse.

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