FRAGMENTOS II
Flora Rodrigues

Quando o dia escurece e a noite aparece lembro-me incessantemente de ti. Sinto falta da tua voz, do teu calor, do som da tua respiração ritmada ao meu lado, que me embalava suavemente num sono profundo e eu adormecia segura da minha felicidade, segura do teu amor. Mas agora as noites para mim, são noites brancas, noites de insónia em que as mais diversas memórias me assaltam a mente e impedem-me de cair naquele sono profundo que eu tanto queria, que eu tanto precisava.

Às vezes penso ,se as pequenas coisas que entendi como sinais da tua presença eterna a meu lado, não serão meras ilusões, meras coincidências, simples obras do acaso. Mas tu, tu dizias-me que o acaso não existia, que nós fazíamos o acaso , que o nosso destino era a nossa obra e que essa obra tinha que ser aperfeiçoada a cada dia que passava. Parece que estou a ouvir a tua voz, com aquele timbre grave e sonante que a tornava tão especial, a dizer-me que éramos seres privilegiados , que nos era dado sem percebermos, o dom de comandarmos a nossa vida; mas que nós seres humanos por vezes estávamos tão ocupados a destruir-nos uns aos outros e o mundo que não percebíamos o verdadeiros sentido da vida. E falavas-me de grandes pensadores da Grécia e comparavas as suas teorias com pensadores do nosso século. Lembro-me de citares Gaston Bachelard sempre que erravas "Erro tu não és um mal" e repetias vezes sem fim a tarefa que tinhas em mãos até que o resultado fosse perfeito. Parece que te estou a ver brincares com um pedaço de gesso na mão e como que por magia um busto de um cavalo tomava forma. A sua crina parecia esvoaçar ao vento E eu ficava fascinada a ouvir-te e a ver-te. 

Perguntara-me vezes sem fim como eras tão intolerante contigo e tão tolerante com os outros. Um dia perguntei-te e respondeste-me que eras responsável por ti e tinhas consciência disso, os outros talvez ainda não tivessem ganho essa consciência e a intolerância em nada ajudaria. Afinal a intolerância era a mãe de todos os conflitos entre os homens, a verdadeira causa de todas as guerras.

Um dia porém surpreendeste-me. Estavas-me a ensinar atirar e enquanto me ensinavas a segurar na arma e a fixar o alvo, disseste-me : "- Só estarás pronta quando não errares uma única vez. Lembra-te que há alturas da vida em que só se erra uma vez ...".

Nunca poderias imaginar quão profética era aquela frase. Lembrava-me dela vezes sem fim, enquanto puxava o gatilho e tentava acertar com precisão o alvo. E nisso era perfeita. Porque a tua insistência me tornou perfeita. Perdi a conta ás tardes que treinámos sem descanso, até que eu tivesse ganho precisão e não errasse no alvo. E eu nunca errei no alvo desde esse dia!

Mas hoje, sei que tinhas razão. Infelizmente não foi preciso errar no alvo, para que eu aprendesse da forma mais amarga que tinhas razão. E nas minhas infindáveis noites brancas, um único pensamento me baila na mente : "Lembra-te que há alturas da vida em que só se erra uma vez..."

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