MEDO DE FANTASMA
Ana Luísa Peluso

Ela queria dizer de fantasmas. Suas cores ou falta delas, na melhor das hipóteses. Queria dizer que vira um, meio assim, não tinha certeza, ainda outro dia. Ao contrário da tia (que sumia depois dos berros austeros, vendo que perdia o rumo e a rédea da situação) ela não os temia. Mas nessas ocasiões em que queria dizer deles, a tia dava sumiço à própria aparição na cena e seguia rumo para trás da porta, entre risos nervosos, raiva e olhares, sentindo pena de si mesma. Sim, a tia temia fantasmas e mais ainda o que deles se dizia.

Então ela queria dizer de fantasmas; dizer que já os tinha visto, que costumava estar com eles e que chegavam a formar reunião vez ou outra. E dependendo do fantasma que aparecia, o assunto variava. Tinha os que contavam as suas dores. Outros, sua sina de tentar entender o porque de serem fantasmas, outros ainda se ressentiam por não terem tido escolha na transformação de ser humano para ser fantasma. E por aí seguia uma lista interminável de tipos fantasmagóricos que lhe rodeavam a existência. A tia já suspeitava, mas deixava claro que não queria o assunto em pauta e ela se calava, respeitando sua vontade.

Eram tantas as histórias que ela não se perdia entre elas, não se sabia como. Um deles fora abandonado pela mulher em vida. Ele aprontara feio!, e ela pegou o danado com a boca na botija. Ou perto dela. O que, se não o fazia culpado, inocente também não o fazia. E se fora com os filhos, todos uns trastes, sabia ele, mas eram seus e achava que teria conseguido colocar todos na linha apesar de andar fora dela. Havia também o pintor de quadros morto por overdose de cocaína, que ao menos já possuía salvo conduto para estar ali, o que era um progresso na sua condição de fantasma em liberdade condicional. Ainda chorava a bomba de Hiroshima e suas vítimas estampavam-lhe as telas, aos montes. Nenhum outro horizonte o interessava mais que a dor. E isso a impressionava a ponto de muitas vezes não desejar suas visitas, mas acabara se afeiçoando à sua gentileza e conhecimento. A velha senhora fantasma que dizia ter sido Greta Garbo em sua última encarnação, apesar de não se assemelhar em nada com a atriz e conversar em perfeito português, dizendo-se poliglota em condição fantasmagórica, era que menos aparecia ultimamente. Era a mais esperada entre seus amigos fantasmas e já sentia falta dela, seus requintes nos modos e seu suave perfume.

Mas não agüentava mais não ter com quem dividir tudo o que ouvia deles. A situação estava se tornando insuportável. Precisava contar à tia tudo o que lhe sucedia. Temia a loucura, se não abrisse seu coração a quem mais amava.

E resolvera contar tudo sobre seus inúmeros amigos fantasmas naquele dia, mais especificamente pela noite. Mesmo sabendo que com isso poderia perder a estima e a guarida em casa quente ou mesmo a comida na mesa e os poucos afagos nos cabelos. Contaria não apenas da vontade, mas da realidade que já fazia parte de sua vida. Tinha pensado em dizer tudo após o jantar, ao menos assim nenhuma das duas perderia o apetite se a conversa fosse indigesta. A tia era um tanto sisuda e magoada com a vida, mas a tinha em grande estima. Por isso tentara várias vezes introduzir a conversa aos poucos, dizendo primeiramente de sua vontade de falar com os mortos, para finalmente um dia contar que já falava e isso era um fato imponderável.

Mas sucedeu o inusitado e tiveram companhia para o jantar. O antigo professor de geografia do ginásio aparecera sem convite para cear com ambas e ela teve de acatar a esperança que ele não se demoraria após a refeição e assim que se fosse, seria extremamente sincera e contaria que já vira e conversara com vários espíritos de mortos, incluindo o do tio, que talvez não estivesse enfim satisfeito mesmo com aquela visita inesperada do professor, já que fazia algum tempo, cortejava a tia nas missas de domingo e não deixava obscura sua vontade de namorá-la, mesmo que apenas "para experimentar", como dizia ele e a tia lhe contava. E ela sempre ouvia.

Mas naquela noite, a tia lhe parecia mais confiante e sorridente durante o jantar e ela pressentiu que ele não sairia dali tão cedo quanto deveria e passadas duas horas do jantar, agora sentados na sala de visitas, resolveu que contaria de qualquer forma. Não podia passar daquela lua, sua confissão. Já não agüentava ter de omitir fato tão importante em sua existência.

Foi quando interrompendo a conversação de ambos, perguntou ao professor se ele acreditava em vida após a morte, ao que ele retrucou dizendo ter suas dúvidas. A tia empalideceu subitamente. Ela demorou-se a decidir se continuava ou não a conversa, mas notando que ele ainda lhe fitava, disse que sempre tivera vontade de conversar com os mortos e que para ser sincera já o fizera.

Pronto. Tinha dito. Ali mesmo em frente à tia, que nesse momento estava tão branca quanto cera, cor que nem seus amigos fantasmas traziam no semblante. Pálida e imóvel, permaneceu por mais de uma hora na mesma posição, enquanto ela e o professor trocavam idéias acerca do assunto. Ele lhe aconselhando a procurar algumas publicações que poderiam lhe esclarecer as dúvidas, interessado no assunto e dispondo-se a ajudá-la na busca por respostas, também pesquisaria na biblioteca da escola. E ela contando os detalhes de seus encontros, as facetas de personalidade que cada um carregava e das várias histórias que ouvia deles.

A tia muda, fitava as mãos cujos dedos se enroscavam uns nos outros num pânico visível e absoluto. O professor parecia não perceber nada, mas quando notou enfim as mãos trêmulas da jovem senhora perguntou-lhe se sentia bem, oferecendo-lhe carona até a farmácia mais próxima, caso se sentisse realmente indisposta. Fato que a tia desmentiu. Certificando-se com várias perguntas de que ela estava realmente bem, despediu-se logo depois deixando ambas sós, com a promessa de ajudar a jovem a descobrir mais sobre os misteriosos contatos que tinha com os mortos.

Após fechar a porta para o visitante, a tia não a olhou mais nos olhos. Levantou-se e foi para seu quarto, deixando até mesmo a louça do jantar por lavar, coisa que nunca fizera antes.

Ela, cabisbaixa e arrependida por ter imputado à tia o dever de ouvi-la, trancou-se em seu quarto também, e soluçando adormeceu.

Quando amanheceu, notou que perdera a hora e com isso a aula do dia. Mas estava disposta a fazer as pazes com sua tutora e agradeceu a oportunidade que surgiu de faltar à aula. Isso lhe daria tempo de explicar-se com a atenção merecida. Entrou na cozinha e notou que a mesma ainda se encontrava na desordem da noite anterior, os copos cheios emborcados dentro da pia, os pratos empilhados aguardando água e sabão e a mesa que todos os dias amanhecia arrumada para o café ainda mostrava sinais do jantar da noite anterior, a garrafa de vinho sobre a toalha xadrez e uma das taças cheia até a metade. Ocorreu-lhe então a possibilidade de acordar a tia, que também devia ter perdido a hora, talvez pela ingestão do vinho, desacostumada que estava com bebidas alcoólicas.

Entrou no quarto devagar e teve apenas tempo de deixar escapar um grito quase mudo. A tia estava morta, a cabeça pendida para o lado direito, os olhos arregalados e uma das mãos segurando um papel amassado.

Chamou a polícia e dentro de pouco tempo a casa agitava-se lotada de gente. Vizinhos, policiais, peritos e suas máquinas fotográficas preenchiam o ambiente. O papel foi retirado com cuidado das mãos da tia e levado pelos mesmos policiais que conduziram seu corpo inerte ao necrotério.

Ela soluçando de dor pela perda, tomava a culpa de tudo para si mesma. Nem mesmo as palavras de conforto do professor nos dias que se seguiram à morte da jovem senhora a encorajavam a acreditar que não era a culpada pela morte da irmã de sua mãe.

Não soube o que estava escrito no papel. O professor disse alguns dias depois, não se tratar de algo relevante, e por isso os policiais não levaram em conta o documento encontrado. Tratava-se apenas de um poema sem sentido, haviam lhe dito.

Ela não compreendia o porque de um fato tão natural levar a mulher a sofrer uma parada cardíaca, e aguardava a visita de seus amigos para saber se tinham alguma notícia da recém falecida, mas eles não mais apareciam, fazendo dela um ser totalmente solitário, deixando-na com a impressão de que nunca haviam existido em sua vida, e tudo não passara de uma farsa de sua mente para induzi-la contra a tia e finalmente tirar sua vida, mesmo que indiretamente. Sim, ela era a culpada! Ressentia-se disso também e chorava todas as noites de remorso por ter cedido a tentação e exposto seu segredo de forma tão fria, sem se preocupar com a fragilidade daquela que a cuidara desde que nascera.

Sentiu um vento brando no rosto ao fechar as janelas da casa, pensando na horrível idéia de passar mais uma noite rolando de um lado da cama para o outro, sem respostas, nem visitas.

Lavava o rosto no banheiro quando sentiu um aroma conhecido vindo da sala. Era Greta!, ela sabia... Ao menos teria com quem conversar até que o sono chegasse! Saiu em disparada até a sala. Mas tudo o que encontrou no aposento, além do estranhamento que sentiu ao ver completamente aberta uma das janelas que acabara de fechar minutos antes, foi um papel caído no chão, semelhante aquele encontrado na mão da morta, no fatídico dia.

Nele, um pequeno poema escrito a lápis dizia:

"Descobri que qualquer um pensa como louco / por um minuto de sua vida que seja / mas apenas quem convida alguém a conhecer o que pensa / é tomado por um / e loucos devem ser deixados / como arcano sem número / em cruel liberdade de pensamentos."

Leu novamente. E mais uma vez. E mais outra. Rasgou então o papel e o queimou aos poucos em um velho cinzeiro guardado na cozinha, enquanto lágrimas sem força lhe desciam pelo rosto. As chamas rapidamente consumiram os versos.

Depois se sentou na poltrona da sala e pôs-se a questionar o imponderável. O olhar perdido denunciava algum fim de ciclo, a alma vazia, a falta de companhia. E os pensamentos se perdiam em total desalinho, ser sozinho que era, sem fantasmas nem escolhas.

Apenas um suave perfume a cercava insistente. Mas fingiu não sentir seu aroma. E levantando-se, ignorou a presença de um único fantasma sentado no sofá (as mãos trêmulas se enroscando uma na outra) que tentava em vão se fazer visível ao seu olhar, enfim distante, de criatura verdadeiramente atormentada.

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