O ESPÍRITO QUE ANDA
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães

Conheci-o em um boteco do Largo da Concórdia, no Brás. Tomava um rabo-de-galo e lia o Notícias Populares. Os dramas do cotidiano estavam todos ali: chacinas, greve de ônibus, adultério, seqüestros-relâmpago... nada que o impressionasse. Na sua idade - calculei que devia estar perto dos sessenta - já devia ter visto de tudo. 

Quando abriu a seção de esportes, puxei conversa.

- Viu a final ontem, companheiro?

- Ouvi os fogos - respondeu com a voz grave com um leve sotaque de gringo.

- Torce pra quem?

- Já não acompanho futebol como antes. Quando era mais moço, lá na minha terra, eu era Liverpool.

- Liverpool? Beatles?

- Exatamente, amigo. Sou Inglês. Meu nome é Walker. Prazer.

Tinha nome de uísque o moço mas era muito educado. Um gentleman, eu diria. E, apesar do calor, usava uma capa caqui, chapéu de feltro e óculos escuros. Lembrava Warren Beatty em Dick Tracy.

Já mais a vontade, pedi uma cerva gelada e estiquei o papo.

- E então Mister Walker, o que o traz a estas paragens?

- Trabalho - disse - Já tinha entrado com os papéis da aposentadoria quando me deram um último serviço. 

E ele me contou que tinha sido contratado pelas autoridades de cá para dar um jeito num problema que elas não conseguiam resolver.

- Pirataria?

- É. Tênis, CDs, brinquedos, roupas, uísque, programas de computador, games. Tá tudo aí, nas barracas dos ambulantes, para quem quiser comprar.

- E você tem muita experiência em lidar com isso? Com pirataria?

- Oh yes! Pode apostar! - Ele sorriu e acariciou o anel de prata em forma de caveira que trazia na mão esquerda ao lado da aliança.

Cinco rabos-de-galos e algumas cervejas depois estávamos quase íntimos. Quem visse diria que éramos velhos amigos, que tínhamos feito o ginásio juntos ou coisa parecida. Lá pelas tantas - acho que pelo o efeito do álcool - o senhor Walker triste e melancólico misturava sua língua nativa com a nossa.

- Give me outro cock-tail, Ceará! - pediu o sexto rabo-de-galo - Que eu tô ficando meio down.

- Se precisar de um ombro amigo... - ofereci. E ele desabafou.

- Daria ouvidos as lamúrias de um velho man bêbado, friend?

- Amigo é pra essas coisa, Walker.

- Sou um fracasso total, understand? A vergonha da minha family. Por séculos e séculos meus ancestors combateram e venceram toda espécie de pirates. Agora, que é a minha vez de honrar o juramento que eles fizeram, I fail, eu falho.

Uma lágrima correu pelo rosto de Walker e ele a enxugou com o colarinho alto da sua capa caqui.

- Não fique assim, amigo. Volte para a sua Liverpool, para a sua família, para os seus amigos. Como diz o samba: "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima".

Ele tirou os óculos e eu pude ver que seus olhos vermelhos e marejados.

- Não posso, brother. Talvez nem deva. Sou um man solitário e sem sorte. 

E me contou o rosário de infortúnios que se abateram sobre ele nos últimos anos. De como perdera suas terras improdutivas para o movimento dos pigmeus sem terra de Bengala, de como lhe tinha doído dar um tiro de misericórdia no seu cavalo branco Herói quando o animal quebrou uma das patas, de como se sentira um zero à esquerda no dia em que soube que seu cão Capeto tinha sido executado num centro de controle de zoonoses já em Liverpool, do traumático dia em que sua mulher o abandonou.

- Diana. My pretty Diana. Era esse seu name. Um dia cheguei em casa e encontrei uma message ao lado da cama: "Fui!". Acho que ela não agüentava mais me ver de porre e fugiu com Guran, meu motorista e friend de longa data. Double traição, believe? 

Compartilhei da sua tristeza. A gente nunca sabe o que dizer numa hora dessas. 

As horas tinham corrido sem que notássemos. Lá fora o som de uma banda de forró pé-de-serra animava a noite dos nordestinos, bolivianos e chineses que perambulavam saudosos pelo largo. Como não tinha mais nada para dizer, também Kit Walker - esses era o seu nome completo - resolveu partir. Amável, fez questão de pagar a conta (em libra já que o Ceará aceitava de tudo, até passe de ônibus), apertou forte a minha mão e partiu, discreto, com um sorriso triste nos lábios.

Um ditado da Selva já dizia:

"Há dias em que o Fantasma deixa a floresta sombria e vagueia pelas ruas da cidade".

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