Felicidade 
          de escritor é conhecer gente. Quanto mais pessoas se apresentam, mais 
          histórias surgem na mente do escriba. Ser 
          futriqueiro, observador, detalhista e que se deixa levar por um bom 
          papo é o básico nesta profissão, e eu não fujo à regra. Hoje 
          mesmo conversei durante trinta minutos com uma senhora, avó, humilde, 
          distinta. Bastaram cinco minutos de conversa para que ela me falasse 
          com orgulho sobre a neta que vai se casar no final do ano. Cutucada 
          por mim discorreu tão apaixonadamente sobre os dotes da noiva que quase 
          caio de amores e estrago o casório. Mas o assunto não é a moça e sim 
          a avó. Eu a encontrei na sala de espera e entabulamos comunicação. 
          A bem da verdade foi Dona Benedita quem iniciou a conversa. Disse algo 
          sobre a demora em ser atendida; que ainda precisava ir a feira no bairro 
          de cima comprar umas hortaliças; que na feira do dia seguinte, na rua 
          mais próxima da casa dela, as verduras não tinham asseio. 'Onde já se 
          viu alfaces com bichinhos?', perguntou-me e sem esperar resposta enveredou-se 
          em nostalgias de antanho, quando morava no interior e plantava ela mesma 
          as folhas da salada. Antes que eu pudesse visualizar aquela senhora, 
          que bem poderia ser Dona Benta, do Monteiro Lobato, encurvada sobre 
          o canteiro de couve, ela mudou o rumo da prosa e meteu críticas no presidente 
          por aumentar o preço da gasolina, o que encarece o transporte de hortaliças. 
          Segundo ela o governo é o culpado pelos altos preços praticados nas 
          poucas bancas que ainda resistem aos modernos hipermercados instalados 
          nas esquinas da cidade. Uma falta de compromisso para com a cultura 
          da feira no bairro. Definiu a politizada senhora.
          
          Enquanto discorria sobre tudo, passando pela neta, pelo zelador do prédio 
          em que morava, pelo filho que foi assaltado e mais algum assunto que 
          esqueci, a velha se empolgava, gesticulava e ajeitava a alça de couro 
          preto no ombro. Foi numa dessas que eu vi a plaqueta prateada costurada 
          na aba da bolsa. A grife bastou para que Dona Benedita perdesse o ouvinte 
          casual e ganhasse um observador detalhista. Não que eu tenha deixado 
          a boa senhora falando sozinha, eu consigo prosear e botar tento noutras 
          coisas ao mesmo tempo. Ela falava e eu assuntava seus modos, ela conduzia 
          a prosa pra outros rumos e eu queria mesmo era saber mais sobre ela, 
          queria desvendar a personalidade, os gostos e, porque não dizer, os 
          pecados da encantadora senhora. Capturei os olhos dela. Cansados, opacos 
          dentro do rosto emoldurado pelos cabelos brancos. Os fios naturais, 
          sem nenhum vestígio de tintura, davam a ela um ar digno de quem venceu 
          muitas atribulações vida afora. Um batom de cor moderna, porém discreta, 
          delimitava as linhas da boca que abria e fechava deslizando de um assunto 
          para outro com a desenvoltura de quem não emite opinião sobre o cotidiano 
          do mundo há tempos. As mãos se movimentavam como se dos gestos dependesse 
          a verbalização dos pensamentos. Vestia-se com toda sobriedade que uma 
          senhora de setenta anos se permite; roupas encomendadas certamente. 
          Cortes perfeitos e premeditados, coisa de costureira pra lá de competente. 
          Disfarçava as formas redondas sem entortar a estampa florida. Vestia-se 
          com flores silvestres a Dona Benedita... Calma! Não sou um depravado 
          que espreita clínicas odontológicas ou geriátricas em busca dos segredos 
          de incautas senhoras, para depois escrever uma crônica ou um conto. 
          Minha curiosidade foi aguçada pela bolsa que Dona Benedita levava a 
          tiracolo. Uma bolsa com a assinatura "Mario Prata".
          
          Desde meados de 2000 que eu sei da existência das Bolsas Mario Prata, 
          nada ver com o escritor. Aliás, o Prata (o autêntico) já escreveu sobre 
          o homem que virou bolsa, ou seja, ele mesmo, mas é que eu nunca tinha 
          botado os olhos na danada. É uma bolsa comum, sem fricotes e sem atrativos 
          maiores que a plaqueta acusando a marca. Uma jogada de marketing que 
          beira a malandragem. Mas voltemos a atenção para a usuária 
          final, a possuidora da bolsa com essa grife. Após conhecer todos os 
          detalhes impressos em seu rosto e mãos, mais a metade da vida de Dona 
          Benedita Dias Bartolozzi, perguntei sobre a bolsa. Ganhou. Presente 
          de aniversário, da neta. Antes que eu esboçasse comentários, ela passou 
          a enaltecer as qualidades da bolsa e o bom gosto da neta. Achei que 
          buscaria uma foto da noivinha lá no fundo, mas não, apenas mostrou o 
          forro, bem costurado. Coisa fina mesmo - ao menos prezam pela qualidade 
          os malandros, e demonstrando saber mais sobre a marca da bolsa que eu, 
          explicou como se fosse verdade:
          
          - Sabia que esse Mario Prata além de ser o dono da fábrica de bolsas 
          também é escritor?
          
          - Será que é o mesmo Mario Prata Dona Benedita?
          
          Ela nem titubeou na resposta:
          
          - É, eu leio a coluna dele no jornal toda quarta feira. Ele é muito 
          engraçado, "faz" novela, teatro, filmes e tem uma porção de livros.
          
          Elogiei a qualidade da bolsa, só para permitir que respirasse. Dona 
          Benedita tomou fôlego e emendou:
          
          - Eu soube que mesmo depois de rico, ele não abandonou a fábrica na 
          mão dos funcionários. Vai todo dia conferir se estão mantendo a qualidade 
          na produção. Minha neta me disse que tudo quanto é grã-fina tem uma 
          bolsa com a marca Mario Prata.
          
          Eu ri. Ela entendeu que meu riso desacreditava seus exageros e maneirou:
          
          - Só não vai à fábrica quando está no exterior, visitando o filho que 
          mora na Europa e também lançando livros em francês, inglês e muitos 
          outros idiomas. Minha neta é que sabe quantas línguas.
          
          Eu quis desfazer o mal-entendido, mas me perguntei qual seria a vantagem 
          em desmentir tão simpática senhora. Desisti. Tanto porque ela já havia 
          mudado a prosa novamente e mostrava os sapatos que ganhou do futuro 
          genro-neto, e que combinavam com a bolsa. Eu pensei em perguntar se 
          o calçado também era fabricado pelo Prata escritor, porém ela 
          foi chamada para atendimento. Saiu faceira com a Mario Prata pendurada 
          no ombro, antes de sumir dentro do consultório, acenou como se não fosse 
          a última vez que me veria. Eu fiquei aguardando atendimento, encantado 
          com tamanha simplicidade e sorrindo para uma porta fechada como que 
          gozando uma overdose de felicidade.