ENIGMA DOS DEUSES
Mairy Sarmanho

Quando meu pai morreu eu perdi a crença nos deuses. Por que deixariam um homem tão bom, culto, honesto, trabalhador, inteligente, compreensivo e excelente cidadão e pai de família ser arrancado de nossas vidas por uns míseros cem reais que algum marginal resolveu roubar? E fiquei indignada com nossa sociedade, pelas pessoas que viram o assalto e não ajudaram, pelas pessoas que o viram morrendo e não acudiram, pelo péssimo atendimento no SUS e pela incompetência de um grupo de pessoas que não valoriza a vida de mais ninguém e se deixa dominar pelo medo e pelo descaso.

Quando meu pai morreu coube a mim, e tão somente a mim, tentar ajudá-lo, protegê-lo, chorar e sofrer ante pessoas estranhas que pouco se importavam com nossa dor e desamparo. 

Meu pai morreu numa tarde linda de sol, às duas horas da tarde, numa esquina movimentada da rua onde morava. Era um homem como poucos: nasceu em berço de ouro e aprendeu a duras penas como viver no mundo comum. Estudou enquanto viveu, fez várias faculdades, lia muito, sonhava com um futuro melhor para todos... Era humilde, trabalhava para conquistar seus sonhos. Nunca recorreu a pessoas importantes para conseguir seus objetivos. Não acreditava nem em políticos nem em religião. Acreditava em Deus e na sua própria capacidade de decidir seu caminho. Ensinou-me que os limites estão em nossa cabeça e deu-me a oportunidade de lutar pelo que queria. Era um homem bom, cuja alma só pode ser comparada ao amor. Amou e perdoou muito, algumas vezes além da conta... Talvez tenha perdoado seu agressor e a sociedade que o permitiu morrer assim, anônimo, sozinho, esquecido...

Meu pai foi apenas mais um nessa multidão de vítimas que anestesia os sentidos e os sentimentos dessa enorme nação brasileira.

Essa semana morreu um jornalista. Morreu da mesma forma que tantos brasileiros, vítimas de marginais que mostravam poder... Morreu como tantos brasileiros, esquecido, abandonado, sozinho... A única coisa especial que havia nele é pertencer a uma classe que se achava semelhante a deuses do Olimpo, intocáveis, acima de todos... Uma classe que, infelizmente, contribuiu para que as coisas chegassem ao ponto aonde chegaram, mostrando fotos de vítimas nos jornais e fazendo apologia de marginais, invertendo papéis, acusando pessoas comuns, honestas, de serem as culpadas pela miséria alheia. Uma classe que vivia às custas do medo, do desespero, da violência, pois com notícias assim se vende mais jornal, se consegue audiência, se ganha pontos do ibope. Falo daquilo que sei, tenho amigos jornalistas, iniciei o curso mas desisti, porque não aceitei os argumentos de imparcialidade que afirmavam real.

Hoje, ouvindo uma reportagem, tive que rir diante do horror: foi dito que haviam percebido um estado paralelo que comandava a nação. Só hoje? Que enigma é esse capaz de manter seus olhos vedados ante a impunidade, ante o massacre de inocentes condenados por haverem tido mais sorte ao nascer, por terem uma família mais perseverante, trabalhadora, lutadora que os protegeu até onde pode? Tive vizinhos seqüestrados, assaltados, mortos e o que aconteceu? Nada! É como se a vida dessas pessoas não valesse nada!

Hoje tive de escutar a surpresa irreal daquele apresentador que se dizia surpreendido com a violência! Onde esse sujeito mora? Em que ruas circula? Onde estudam seus filhos? No mundo da lua? Na estratosfera? Eu e minha família moramos no Brasil, sentimos na pele o medo, evitamos sair à noite com receio de assaltos, assassinatos, nos enclausuramos em nossas casas com cães ferozes, alarmes, guardas, para não sermos mais um número na enorme lista de vítimas esquecidas que atolam de lama a bandeira verde-amarela de nossa pátria. Somos párias? Nós que trabalhamos, que enfrentamos o dia-a-dia com dignidade e competência de sobreviventes, não valemos nada? O que vale mais esse homem do que meu pai? Quem era ele para mim senão um desconhecido? Para ele, quem era meu pai?

No enigmático Monte Olimpo, os deuses arregalaram os olhos ao perceber o nascimento de Hércules, tão humano e mortal quanto qualquer um de nós... Pena que isso tenha custado a vida de mais uma pessoa!

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