O VIOLONCELLO DE ALICE
Adilson Sobrinho

Alice tinha um violoncello, no qual arpejava acordes belíssimos e de muito fino gosto, não era uma virtuose mas mantinha uma relação muito próxima com o seu instrumento e a música que ele produzia.

À medida que o tempo, ou seja lá qualquer outra força da natureza, mudava, mudavam também os sons de seu violoncello. Em dias frios e tristes, suas cordas pareciam bambear-se e seu canto era choroso, uma espécie de lamento, Alice, nestes dias, corria-lhe o arco, com ímpeto, força e rapidez tentando fazê-lo produzir o mesmo som dos dias claros, era apenas um violoncello, mas parecia ter uma grande vontade própria, por mais que Alice tentasse, o seu som se fazia como o tempo, como o dia, frio e triste, ela por fim o compreendia e não lhe exigia folias em momentos um tanto fúnebres.

Em dias de sol, mesmo que triste agora estivesse Alice, o violoncello entoava sorridente e em alto e bom som, acordes do mais puro alegro, mais que andante, mais que alegreto, parecia mesmo nem se importar com a morbidez estampada nos movimentos do arco de sua parceira, cantava por si, e ao final da primeira peça, entre alegros e alegretos, alegrava Alice. 

Alice o cobria de bons tratos, entre óleos para madeiras nobres e um dedicado trocar de cordas, ela o mantinha sempre muito bem guardado, em local seco e arejado e sempre muito bem vestido com a capa original de fábrica, pareciam mesmo se entender, mesmo com as mudanças de temperatura, de tons e humores, eles definitivamente, se completavam. Eram Alice e seu violoncello.

Certa feita, Alice seria alvo de uma platéia exigente e requintada que pagaria para se devanear aos sons produzidos pela dança do arco nas cordas tesas do belo violoncello, ela a condutora, ele o conduzido, uma sintonia perfeita, simbiose etérea, magia em que se completavam com a consciência de que um não aconteceria sem o outro, o tempo, ora o tempo, não há dilúvio que nos impeça de brilhar e, qual não foi a sua surpresa ao perceber uma tarde fria, triste, no dia em que seria o dia da grande prova pública de sua doce cumplicidade e talento junto aquele artefato de madeira. 

Minutos antes, na solidão da coxia, eles se entreolharam, percebeu-se no ar que algo não sairia como se esperava, não mais havia tempo nem motivos para cancelamentos, subiu ao palco e frente ao alarido de palmas, ela o abraçou como que lhe dando força e carinho e, a platéia presente, atônita, jamais se esquecerá de tão belo, pungente e apaixonado concerto.

Um belo violoncello, mesmo temperamental, soube escolher a hora.

Alice não mais existe, não se tem mais notícias do violoncello. Essas histórias ainda acontecem, não há mais quem as conte, podem estar escondidas em algum canto de uma preciosa orquestra, ou mesmo acontecendo na casa ao lado, mas não são maioria os que vêem e contam com os olhos e vozes que vem do coração.

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