A IMAGEM DE RITA
Jorge Gomes da Silva

Ofegante e exausto, correu pelo passeio em busca da pequena Rita. Andava nisto há horas e começava a sentir esgotado o espírito de missão. Contudo, impôs a si mesmo mais alguns quarteirões como limite. Uma questão de brio, pensou. A miúda fora sempre uma fonte de problemas. Irrequieta e mimada, não dava tréguas a todos quantos viviam no modesto apartamento. Ele, pouco mais do que hóspede, pagava por um impulso irreflectido que o levara a segui-la e trazê-la de volta por ocasião da primeira escapadela. Agora, era quase uma obrigação. Descobriu a garota na entrada do centro comercial. Cumpriu o ritual, assumindo a habitual expressão de desagrado e rumou em direcção a casa. Ela, seguiu-o em silêncio, como de costume. Feliz pela partida que lhe pregara, saltitava pelas ruas, alheia ao resmungar do detective improvisado. Apesar de tudo, ele nutria muito carinho por Rita. Vira-a nascer e não conseguira romper um inexplicável laço que sempre os unira. E pagava assim o bom acolhimento que tivera por parte daquela família quando a rua o cansara, anos antes. Nunca esqueceria a tarde chuvosa em que, sujo e fatigado, escolhera a entrada daquele prédio para uma sesta. Perseguido pelas autoridades municipais e em permanente sobressalto por via das muitas agressões de que fora alvo, agradeceu o convite para passar a noite em casa dos Silvas. Divertido, regozijou-se pelas poses dramáticas que haviam condoído o senhor Silva ao longo de diversas crises de coabitação nos dez anos ali passados. A esposa, mais sentimental, nunca resistira ao olhar triste que assumia quando a expulsão parecia iminente. Desta forma, perpetuara a sua estadia na agradável residência. E adquirira hábitos burgueses, sem dúvida. Desta vez, decidiu não entrar no elevador com a criança. Desconcertado, sentiu o estranho apelo da liberdade semi-selvagem das ruas da cidade. Olhou para Rita, sorriso traquina entre bochechas sardentas, com imensa ternura. E deixou o edifício. Precisava de pensar um pouco, de estar só e organizar as ideias. Sentia saudades dos amigos, das rudes fêmeas da noite, da constante emoção da vida ao relento. Um contra-senso, considerou. Noutros tempos, o aconchego de um lar assumira contornos de paraíso distante. Mas os anos não perdoavam. Estava gordo e preguiçoso. E a vista começava a falhar-lhe, por vezes. Talvez não passasse de uma crise nostálgica. Talvez nem pudesse suportar as saudades que já tinha de Rita. Talvez... A distracção foi fatal. Não viu aproximar-se o carro que o projectou de novo para a berma da estrada. Tombado no asfalto, viu apenas o veículo prosseguir a sua marcha. E sentiu uma dor mais forte que a do corpo esmagado. A da morte que o procurava. Viu rostos consternados de senhoras bem vestidas. Viu um homem que o puxou para junto dos contentores do lixo. E viu a imagem de Rita, pela última vez na sua vida. A vida de um cão chamado Farrusco.

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