VERBO TRANSITIVO
Larissa Meo

Diário de bordo: Na vida só se faz 18 anos uma vez. Quando alcancei a marca tratei de providenciar minha habilitação para seguir na direção que acredito, independe do que as placas dizem.

Eu era uma criatura sem vereda, perdida no Vale do Mogi, quando resolvi superar minha falta de interesse por veículos de qualquer natureza. Após 10 aulas práticas para carro e 6 para moto conquistei a confiança necessária para competir o Paris-Dakar em suas várias modalidades. Afinal, eu era uma jovem moderna e como tal tinha de pilotar qualquer coisa que andasse, independente do número de rodas e das cilindradas que pipocavam no motor. 

Teste marcado, nervos a flor da pele, eu não via a hora de colocar a cabeça no travesseiro. Na manhã seguinte fui até o local da prova e mal consegui andar tamanho o alvoroço de gente que se acotovelava na calçada. Em 5 minutos de espera descobri que metade dos candidatos ali era reincidente. E eles estavam lá pela segunda ou terceira vez porque haviam sido reprovados por um tal examinador. Mais 5 minutos de conversa e descobri que a fama do tal examinador corria solta pela cidade feita rastilho de pólvora, revoada de pardais e subida de peixe roncador. O homem era uma lenda, quase uma figura mitológica frente ao temor e aflição que inspirava.

O relógio marca 5 TIC 10 TIC 15 TIC 20 TIC. Minutos cravados no tempo emocional de horas. Nada acontece. Numa toada suplicante, quase histérica, descasquei o terço a todos os santos para me livrar daquela provação. Conversa vai-vem-vai-vem e a lista de candidatos sai. Não preciso dizer que meu nome estava lá. Nem esclarecer que quase fiz xixi na calcinha.

Acho que vale a pena descrever a figura, a lenda, o examinador em questão. Baixo, calvo, meio gordo e de terno preto. Um fac-símile daquele personagem da Família Adams. Como é mesmo o nome do cara? Bem, vamos ao que interessa.

O carro da prova era um Fusca bege, ocre, cor de burro quando foge, não sei qual era aquela cor. Meu teste começou com a balize. Vira pra cá vira pra lá. Encaixei o fusquinha na vaga. A próxima etapa foi entrar no estacionamento com a Fuca, dar ré e parar entremeando as faixas amarelas. O coração quase saltando da boca, o treme-treme de vara verde e a cegueira repentina renderam um embique de viéz. Virei e encaixei o bólido. Palmas pra mim. 

O Fusca bege, ocre, cor de burro quando foge, não sei qual era aquela cor, foi ocupado por 4 pessoas para a prova de percurso. O examinador, 2 rapazes e eu. Os dois rapazes que se gabavam da competência ao volante foram reprovados na primeira. A dupla desceu sorumbática do besouro, sei lá de que cor. Sem platéia no Possante sigo, com o examinador no meu encalço, o trajeto com o liquidificador cerebral ligado em 220 Watt.

A paisagem topográfica no vidro frontal é colinosa. Sobe rampa desce rampa. E na primeira reta vem a ordem para virar à direita. Ouço e obedeço. Indico seta direita e converto. O homem grita, fica nos cascos e alega imprudência, manobra perigosa ou coisa parecida. Manda parar. Paro. Manda voltar de ré. Volto. Visivelmente irritado manda seguir. Sigo meu feeling e não respiro. Só sigo. No pare eu paro, adiante dou preferência e faço outra conversão, indico seta, nada de contravenção. No cruzamento das ruas José Bonifácio e Duque de Caxias o examinador manda estacionar a Fuca quase irado. Ouço e obedeço, pois virei múmia paralítica. A prova de carro acabou, só falta a de moto.

A paisagem muda e o veículo também. O inspetor me acompanha e a avaliação continua. Sob duas rodas escrevo o abecedário em letra cursiva. Capricho nos ésses em número infinito até atingir o perfeito oito e pontuar essa história na ponte da memória. 

Quer saber se fui aprovada no teste? É claro que não. Caí três vezes da ponte e repeti a prova quatro vezes. A prática é uma ciência que não mantém fidelidade com a teoria por isso, teoricamente ou praticamente, tudo pode acontecer. E quanto ao lendário examinador, homem de poucas palavras e terrorista psicológico? Nunca mais vi. Aliás, sem ressentimentos, nem lembro o nome dele.

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