ACEITE UM DELEITE
Rosi Luna

Ela passou deixando um rastro perfumado. E se não fosse Hortênsia? E não tivesse nome de flor? Mesmo assim seria meu amor. Nunca conheci mulher como ela, feita de rendas, prendas e lendas. Tudo rimava e até o corpinho combinava. Usava corpete e tinha um Corvette. Contavam-se tantas histórias dos seus amores que nunca soube entender aquela cidade, aquela crueldade. Faziam julgamentos, como se conduta exemplar fosse um comportamento que ela ignorava.

Conheci essa pequena e me apaixonei de longe. Ela nunca soube que foi correspondida. Sempre consegui desviar meu olhar e nunca permiti que meu corpo másculo e forte chegasse a menos de um metro de sua fragilidade. Parecia uma pétala. Mas a distância guardada não foi suficiente, pois ela morava em meu pensamento - e aí nada poderia nos separar. Sabia que não resistiria aos seus encantos feitos de carinhos e docinhos.

Lembro daquele vestido azul de algodão, e vê-la era como testemunhar um jardim de flores miúdas dançando um farfalhar de botões nas campinas. Para um homem na condição de admirador é difícil controlar. Não sei quando vai passar essa angústia no meu coração, essa necessidade de disfarçar o tempo todo. Por mais que saiba que ela não é a mulher que sonhei pra mim, não consigo me desvencilhar desse amor desmedido. Ela é tão diferente de todas as outras. Nem tão bonita, nem tão bem vestida, nem de corpo tão exuberante. Mas tem um imã que me chama o tempo todo.

Gosta de cartas e poemas, não se importa com falatórios, e nem com os oratórios da igreja. Quase nunca a vi se confessar. "Amar não é pecado" ela diz sempre. Carrega aquele andar imune a qualquer reação adversa da sociedade. Eu sei que ela é livre como um pássaro, com sua mente aberta demais para o nosso tempo. Hortênsia já beijou o Nestor, já saiu o Agenor e não parou por aí. Semana passada, até Euclides, aquele sério, tava se engraçando com ela. Fico assistindo essa fila de homens soltando galanteios, e seguro meus freios.

Minha vontade é amarrá-la em meus braços e dizer: "Hortênsia! Não seja de mais ninguém! Derrube sua saia de renda só pra mim e me dê todo seu tacho de doce abóbora. Não me deixe ficar na sobra, tire os outros dessa roda.” Sigo seus passos, a acompanho como uma sombra - na esperança de descobrir se ela ama alguém de verdade. No começo, achava que ela nunca soube o que é fidelidade. Não queria, mas pensei mal, julguei que era mulher de má conduta e quase a xinguei de puta. Depois, fui conhecendo aos poucos, fui me derretendo por essa moça como coco queimado.

Mas ela foi deixando marcas de batom em tantos homens que eu não poderia aceitar. Hortênsia fazia o que só aos homens era permitido. E se enfeitava toda, se perfumava, se deitava com eles. Sempre ouvi comentários de que quem com ela dormia jamais esquecia. E meu corpo ali, ardendo de desejo. Por isso nunca me aproximei, sempre a olhei com desprezo. A dor de amar era tão funda que nenhum analgésico me dava alívio.

Todavia, nem tudo o que a vontade quer o corpo aceita. Um dia, fui me encontrar com ela. Era apenas um chá da tarde com petit fours. Achei que iria me desencantar de vez, mas foi minha perdição. Ali, com aqueles olhos profundamente sinceros me encarando, pude compreender a magnitude daquele pequeno e expressivo ser humano. Ela foi lendo um poema que havia escrito e então pude entender que só existia um homem na sua cabeça - eu.

Aqueles outros eram apenas um disfarce, para encobrir nosso enlace. Tarde azul, vestido azul, globo azul: muita coisa nos separa. Porém, Hortênsia é minha querência. Entre ventos e juramentos, sei que ela me quer e guarda fidelidade. É assim, por baixo dos óculos, com essa lágrima teimosa escapulindo. Posso dizer, com a voz embargada, que nunca conheci mulher mais fiel. Seu amor é só meu. Seu corpo é só meu. Seu pensamento é só meu. Se isso não é fidelidade, que nome posso dar? Nunca nos beijamos, nunca nos casamos, nem ao menos namoramos. E somos um do outro.

Temos fidelidade ao amor, independente de estarmos juntos ou não. Tantos anos se passaram e pude mudar de opinião. Venho tendo tantos sentimentos. Gostaria de lhe dizer assim: “Saiba, minha menina: te guardo no peito, no sonho do leito. Te entrego uma flor, um copo-de-leite. Me promete um deleite? Talvez eu aceite.”

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