A DECISÃO DE MARIA
Wesley Nogueira

Maria trabalhara ali quase a vida toda, chegara à empresa como aprendiz, e foi ficando, estava ali já há mais de 30 anos, passara por todas as fases boas e ruins da empresa, respeitada por todos, querida por muitos, invejada por alguns, temida por poucos, mas tida como um dos pilares da fábrica, por ali passaram muitos engenheiros, administradores, doutores de anel no dedo, eles vinham e iam, mas ela continuava lá. 

Fez daquele trabalho sua vida, tanto que nunca conseguiu atrair um homem para dividir com ela a vida, pois era sempre a primeira a chegar e a ultima a sair, férias, nunca soube bem o que significavam, pois para ela era apenas a oportunidade de receber em dobro pelo trabalho, quantas e quantas vezes saía da empresa às dez da noite, para entrar de novo às cinco da manhã, fazia da empresa sua casa e do trabalho sua vida, numa fidelidade quase canina, talvez até maior às vezes. 

Era admirada pelos colegas por ser a única a poder entrar escritório a dentro, de bata, e adentrar o gabinete do presidente, sem ser anunciada, era apenas girar a maçaneta e entrar, tratava o patrão por seu, abstendo-se do pomposo Senhor ou do desnecessário Doutor.

Ganhar muito não ganhava, mas não se poderia dizer que não tivesse suas vantagens, a mãe foi tratada pelos melhores médicos à custa da empresa, mesmo sem plano de saúde, o patrão custeara todo o infelizmente inútil tratamento, e quando este não pode salvá-la, pagou todas as custas do enterro. Mas não era por isso que ela era tão fiel ao patrão e à empresa, ela adorava trabalhar para alguém que ia na sua pequena sala todos os dias de manhã só para tomar o cafezinho que ela fazia, perguntar sobre as coisas do trabalho e as vezes até mesmo conversar amenidades. Ela adorava as piadas que o patrão contava, ou dos filhos, que quando ela conheceu eram crianças ainda, arriscava até a dar conselhos sobre a educação dos meninos.

Mas tudo que é bom dura pouco, e o patrão um dia entrou no hospital para sofrer uma cirurgia, o risco era alto e ele não resistiu, foi uma perda enorme para todos os funcionários da empresa, mas para ela foi igual ao sofrimento da família, aliás, ela poderia rivalizar com a viúva na demonstração de luto, e todos sabiam que a demonstração era sincera.

O Júnior assumiu os negócios com a promessa de que nada mudaria, que continuaria o trabalho da pai, mas para ela nunca mais foi o mesmo, nada mais de cafezinho com o patrão todas as manhãs, nada mais de ir ao escritório a hora que quisesse, nada mais de entrar sem ser anunciada, de repente ela passou a ser vista como o anacronismo em oposição à modernidade, o dedo do Júnior começou a agir, eram novas idéias, novas formas de se fazer velhas coisas, ela foi vendo seu pequeno império ir encolhendo cada dia mais, continuava o seu trabalho de forma insistente, mas agora era submetida sempre a opiniões de outros que antes não a questionavam.

Maria, agora sentada em sua mesa, pensava no que fizera de sua vida, uma mulher sozinha, de mais de cinqüenta anos, sem marido ou filhos para dividir alegrias ou tristezas, nem um passarinho conseguira criar, pois não ficava em casa tempo suficiente para alimentá-lo, vendo seu trabalho, que era também sua vida, se esvaindo por entre seus dedos, a empresa que ela ajudou a erguer e que agora parecia não querer precisar dela.

Ela sabia que ainda era importante para a fábrica, pois dela dependiam todos os processos, a experiência com a fabricação dos produtos, cada vez mais ela via novos aprendizes querendo copiar seus métodos e processos, a fim de torná-la desnecessária. 

Não foi surpresa quando o novo patrão a chamou para uma conversa particular, propôs-lhe algumas vantagens e prêmios para que ela passasse o serviço a pessoas mais jovens e, na opinião dele, mais capazes, aos engenheiros de canudo na mão, mas que só tinham passado próximos de uma fábrica quando elas estavam no caminho de ida à faculdade. Maria pediu para pensar, daria a resposta em breve. 

Ela estava dividida, sabia que, passando o que sabia, seria descartável, perderia sua importância, dividia-se entre duas fidelidades: ao trabalho e a ela mesma. O que fazer? Receber os parcos prêmios que lhe eram oferecidos, sabendo que logo seria descartada, ou continuar, necessária, porém não querida na empresa?

Maria aceitou a proposta do Júnior, mas impôs uma condição, alem dos prêmios que lhe ofereciam ela queria levar com ela a sua mesa, a cadeira e as xícaras onde ela tomava café todos os dias com seu falecido patrão.

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