CRÉDITO
Mariazinha Cremasco

Dona Vilma é uma vizinha, que mora do meu lado esquerdo. Não do meu lado esquerdo do peito, quem nem minha amiga ela é. Embora tenha um certo talento para diminuir minha paciência, que reconheço, ultimamente já anda um tanto quanto escassa, admiro essa mulher em alguns pontos. Ela tem uma casa grande e muito bem cuidada. Um jardim digno de paisagista. E cuida dele sozinha. Sua plantas estão sempre bonitas e as flores têm cor o ano todo. Parece ser sempre primavera no jardim de dona Vilma. Azaléias, dálias, lírios, rosas. Um jardim antigo, bem cuidado. Samambaias caem dos grandes ganchos pendurados na garagem. No natal, luzes multicoloridas, inclusive em tempos de racionamento de energia, deixam a casa ainda mais bonita. Energia tem dona Vilma. Parece incansável. Faz tudo, tem tempo para tudo. 

Minha admiração maior está nos bichos que dona Vilma cria. Um vira-latas preto, de pêlos brilhantes. Um poodle, raça que abomino, mas que cuidado por dona Vilma (ela mesma faz a tosa) me parece até simpático. Ainda um collie maravilhoso, que está sempre no jardim, como que enfeitando a frente da casa. Sem contar a tartaruga, os pássaros e peixinhos.

No quintal, que dá de fundos para o meu, um papagaio que conversa comigo de manhã. O danadinho imita o Sílvio Santos. Obra de dona Vilma, claro. Perseverantemente ensinou o louro a falar e dá-lhe imitar o SS (ela é tão chata, que até o louro aprendeu depressinha).

Dona Vilma tem três filhos e é daquele tipo de mulher que não se cobra por nada. Não se sente em débito com ninguém. Costuma dizer: 

- Faculdade pra quê? Tá assim de vendedor de cachorro quente com curso universitário. Eu, heim? Pagar faculdade? Meus filhos não vão estudar. Têm mais é que trabalhar e pronto. Saber muita coisa não leva a nada. Ademais, o que as faculdades de hoje e ensinam de bom? Nada. Deus ajuda a quem cedo madruga (pelo horário em que começa a fazer seus altíssimos barulhos, ela deve estar sendo muito ajudada por Deus. Antes das seis da manhã já se pode ouvir a mulher com aquelas máquinas de jato d'água pelo quintal e até sobre a garagem).

Disso dona Vilma não abre mão. Filho dela não estuda. Só termina o primeiro grau. Ela acha desnecessário. Para que falar corretamente? Para que saber tanta coisa, se não vai usar no dia-a-dia? Seus ouvidos não doem quando os filhos dizem pra mim fazer, pra mim comer, pra mim levar, menas gente, e outras barbaridades mais.

É malufista do tipo que acha que o homem rouba, mas faz. Preciso falar mais de dona Vilma? Ah, preciso, sim. Ouve pagode na maior altura. Grita, esperneia, estrebucha. Faz escândalos homéricos. Eu não quero, mas ouço tudo o que dona Vilma faz, fala, grita e agita. E olha que não tenho nenhuma vocação pra voyeur (será que voyeur é só quem vê? Eu ouço, mas vá lá). Briga com o carteiro, discute com o guarda noturno, implica com o homem do gás, bate boca com os meninos da rua, e é uma verdadeira carrasca com os próprios filhos e marido. E eles a respeitam. Os filhos são bonitos e calmos. Parecem de bem com a vida. São adultos, já. Ela não empresta o carro, não permite que o marido empreste e ainda não vai buscá-los ou levá-los a parte alguma.

- Se podem ir para as baladas, podem também voltar. Se não tiver condução, que esperem os ônibus e metrô voltarem a funcionar. Filho meu tem que aprender a se virar. 

Na verdade o que eu queria mesmo era ser como a dona Vilma. Uma mulher com predicados, porém Vil e Má, como seu próprio nome sugere. Que não tem rabo preso e não se sente em débito com ninguém. Nem mesmo com os filhos, o que contraria o que penso a respeito do amor exagerado das mães.

Eu faço, realizo, participo, ajudo, mobilizo, adivinho, me enrosco, compro a briga e me sinto sempre em débito. Sou politicamente correta, segundo meu marido. Sou hipócrita, segundo algumas pessoas - que me dizem isso ainda que subliminarmente. Talvez porque eu pretensiosamente queira ser "boazinha" com todos. Marido, filhos, pais, amigos e vizinhos. Não quero mais me sentir assim, em débito com as pessoas. Vou mudar isso. Não quero mais ser legalzinha. Quero ser má. Não vil, mas má. Já notei que os "legaizinhos" são pouco ou nada respeitados. 

Hoje começarei a acertar todas as minhas contas sentimentais. Talvez as contas comigo mesma. Não pretendo mais me sentir em débito com ninguém. E isso é ponto pacífico! 

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