LANÇA
Carlos C. Alberts

Estava no terceiro ano da Faculdade. E, como todos, bebia muito. Cerveja. Afinal, estávamos em Ribeirão Preto, e se fosse por falta de desculpa, o calor se encarregava de tornar natural aquele hábito. Só que, no meu caso, estava indo longe demais. Dormir tarde toda noite, ressacas homéricas, início de labirintite. Meus estudos estavam indo mal. Mesmo adorando o meu Curso. Biologia. Resolvi tomar uma atitude drástica. "Vou parar de beber até passar em todas as disciplinas do segundo semestre". Para mim, o meio termo sempre foi mais difícil que os extremos, ainda mais naquela idade, 23 anos. Pareceu-me muito mais fácil parar de beber que diminuir. 

Parar de beber até que não foi tão difícil. Eu conseguia até participar das mesas onde o pessoal bebia, enquanto tomava uma "água tônica com gelo e rodelas de limão". Sentia até um pouco da sensação de relaxamento que as bebedeiras trazem na fase eufórica. 

O difícil era ficar careta, enquanto os outros se drogavam. Afinal, descobrir a vida de adulto, longe de casa, com responsabilidades, nunca foi uma coisa simples. Procurei outras drogas. Maconha, como a de muitos, foi minha primeira alternativa. Eu juro que tentei, mas não curti. Bolinhas (anfetaminas) foram interessantes, até ajudavam a estudar, mas apresentavam uma fase depressiva longa. Pó, somente cheguei a experimentar, porque era muito caro e ligado a um pessoal barra pesada, naqueles idos de 1983.

Uma noite, numa festa, um colega da Psicologia falou.

- Quer cheirar?

Imaginei que ele falava de coca e declinei. Ele disse que com aquele som, ficava "demais".

- Como assim?

Disse eu. Não imaginei que cocaína alterasse o sentido da audição.

- É lança, cara.

- Lança? Que lança?

- Lança Perfume.

Explicou meu amigo.

- Aquele bagulho do Carnaval?

- Mais ou menos. Quer?

E foi até a cozinha, pegou um pano de pratos mais ou menos limpo, rasgou-o, dobrou-o e tirou do bolso um frasco plástico de desodorante spray. Abriu a tampa e apertou o frasco, direcionando o jato para o pano dobrado.

- Cheira tudo de uma vez.

Eu fiz como ele disse. Um forte cheiro de éter, clorofórmio e mais alguma coisa agradável. Um novo mundo se abriu para mim.

"...Clara Crocodilo sumiu, Clara Crocodilo escapuliu..." vinha na voz de Arrigo Barnabé da direção do toca discos. Só que ecoando poderosamente dentro da cabeça, à cada batida da batera, à cada acorde da guitarra. Cada nota parecia tocar duas ou três vezes enquanto que as notas seguintes continuavam a melodia e, por sua vez também se repetiam. O chão parecia oscilar levemente para um lado e depois para o outro, no ritmo da música, a iluminação pareceu se suavizar mas as cores ficaram mais fortes. De repente, tudo voltou ao normal. O som, a luz, as cores, o chão. Como se nunca tivessem se alterado. Só um leve cheiro de éter no pano. Uma viagem de poucos segundos.

- Deixa eu experimentar mais um pouco.

Pedi. O amigo, generoso, colocou mais um jato no pano.

"...vê se tem vergonha na cara. E ajuda a Clara seu canalha..." Que maravilha e, logo depois, tudo normal outra vez. 

Da onde vinha aquilo? Quem fazia? Onde arranjar mais? O amigo explicou que o pessoal do Curso de Química tinha trazido a novidade de uma competição esportiva comum naquela época, a Interquímica, onde várias faculdades se reuniam em um campus e competiam em diversas modalidades, mas o que todo mundo queira mesmo era saber das festas e bebedeiras que aconteciam depois das competições. Existiam também a Interbio, a Interpsico, a Intermed, etc. Conversei com um colega da Química e ele me deu um pouco de lança e até me emprestou um frasco usado de desodorante spray. Usei a noite toda, curti demais. 

No dia seguinte, nem um pingo de ressaca (a não ser um gosto de éter na boca, que não resistiu a um escovada nos dentes). Freqüentei todas as aulas, estudei à noite, não senti vontade de beber (continuei tomando água tônica com limão e gelo). Tinha achado a droga ideal. Naturalmente ela devia fazer algum mal, já que era a mesma mistura que usávamos para sacrificar animais nas aulas de zoologia. Mas quando você tem 23, não pensa muito nisso. E eu ainda nem tinha descoberto o melhor. O lança tinha um efeito colateral fantástico. Eu só percebi na festa seguinte. 

Devidamente equipado com um lenço de algodão que tinha ganho do meu pai, meu frasco plástico de desodorante em spray cheio de lança cedido pelos bons amigos da Química, esperei tocar um som legal. Colocaram Jorge Mautner. Despejei um jato e cheirei.

"...Sobe cobra. A cobra tem que subir..." Aquela sensação maravilhosa do som dentro da cabeça, o chão dançando levemente, luz diminuindo, cores mais fortes, esquecer de tudo. Logo em seguida, tudo real outra vez. Já tinha despejado novo jato no lenço. Quando ouvi.

- Deixa eu cheirar também? Só que eu não tenho lenço.

Era a Viviane, Vivi, uma nissei linda e rica (o que certamente não era o meu caso), da Bio, por quem eu sentia um tesão recolhido mas que nunca tive coragem de chegar junto. 

- Claro, cheira com o meu lenço. 

Ela cheirou, fechou os olhos, encostou a cabeça no meu ombro e ficou assim durante uns segundos.

- Mais. Vamos cheirar juntos.

Ordenou, e pegou o lenço e frasco das minhas mãos. Despejou um jato generoso, encostou o lenço em meu nariz e boca e encostou a sua boca por cima. Aspiramos juntos e ficamos encostados um no outro até passar o rápido efeito. Um paraíso. Inevitavelmente, tive uma ereção e fiquei com medo de ela perceber e se ofender. Fizemos de novo e de novo. Na quarta vez, um pouco antes de passar o efeito e de nos separarmos para novo jato, ela retirou o lenço mais depressa e nossos lábios se tocaram. Ela não tentou evitar e eu, muito menos. Foi um beijo tão molhado, tão macio, com gosto de éter e essência de alfazema (que o pessoal da Química tinha acesso, não sei como).

- Vem. Vamos cheirar no quarto da Gina. 

Ela me puxou pela mão, enquanto segurava o frasco e o lenço com a outra. Abriu a porta sem bater e entrou. Naturalmente, o quarto estava ocupado. Gina e outros dois caras da Psico estavam fumando uma pontinha de um cigarro de maconha, sentados no chão, de pernas cruzadas. Vivi foi até perto da Gina, ajoelhou-se e falou alguma coisa em seu ouvido. Gina olhou pra mim, levantou-se, puxou os caras da Psico, que ao olharem para mim pareciam dizer "Pô, cara, atrapalhando a nossa". Vivi fechou a porta, desligou a luz do teto, deixando somente o abajur, com um lenço de Bali por cima. Mais uma vez me puxou pela mão, até a cama. Colocou um jato de lança no lenço, empurrou meu peito até que eu ficasse deitado de costas, pôs o lenço sobre minha boca e, de novo, a sua por cima. Aspiramos juntos, eu retirei o lenço e nos beijamos outra vez. Agora ela estava por cima de mim e seria impossível não perceber minha ereção. 

Transamos, naturalmente. Mais de uma vez. Com a porta destrancada. Mesmo depois de ter acabado o lança. Dormimos na cama da Gina. Ao acordar, beijou meu rosto e falou "tchau". 

Como geralmente acontecia nestes casos, nos dias seguintes, quando encontrava Vivi, era com se nada tivesse ocorrido. Mas nas festas, com lança, tudo voltava. Decidi falar claro. No intervalo de uma aula, chamei-a de lado e perguntei se ela queria ir até a minha república naquela noite.

- Por que? Tem prova amanhã?

Disse ela tentando lembrar das datas.

- Não, é aquele outro assunto entre nós.

Ela sorriu e, parecendo estar falando com um filhote de cachorro, passou mão no meu rosto e disse.

- Acho que você entendeu tudo errado. O que é uma certa decepção. Todo mundo diz que você é tão inteligente. Quando cheiro lança, faço coisas que não faria e com pessoas com quem eu não faria. Preciso voltar para a aula. Tchau.

Na festa seguinte, ela me procurou e perguntou se poderíamos "cheirar" juntos. Por mais que eu quisesse, me contive, toquei seu queixo com a mão e disse, como se estivesse falando com um filhote de gato.

- Acho que você entendeu tudo errado. O que não me surpreende. Todo mundo diz que você é somente bonita. Quando cheiro lança, faço coisas que faria mesmo sem estar cheirando. Procure alguém que pense como você. Isto é um presente. Você pode precisar. Tchau.

Coloquei o frasco com lança em sua mão. Me virei e saí da festa. 

Fui a um bar e tomei um porre de cerveja.

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