INCENSO
Luciana Franzolin

te liguei. 7 vezes seguidas e "não posso atender agora, se quiser deixar recado espere o sinal". 

não vou esperar o sinal. eu já tive o sinal, bruxa que sou. eu sei os seus olhos de vento e fogo, sinto o seu cheiro de gamo, de musgo, de húmus molhado de chuva.

eu sei o que você faz nesta tarde, pensa que esqueço o começo? 

tardes quentes e úmidas, dignas de praia, tardes de aula e de contas a pagar, que ficavam pra depois. a tarde é a hora certa da invisibilidade.

continuamos os mesmos. se já traímos, somos passíveis de traição. tanto eu quanto você sabemos que somos capazes, e ainda não fizemos um trato, nada claro sobre o relacionamento, sobre as posses, sobre os meios, sobre o sim e o não. o que podemos ou devemos evitar.

vou atrás de você, te buscar agora. vou entrar sozinha nos seus motéis preferidos e conferir cada portão acionado pelas rodas que estacionam calmas, num suspiro aliviado de fuga fictícia.

vou te fotografar, me espere, vou revelar, e fixar sua imagem num papel fosco, de alto contraste.

estou na rua e compro palha para enrolar cigarros, preciso pensar melhor por onde começar.

com a câmera pronta, estaciono sem ruído e encontro a chave do seu portão, você pode estar aí, na sala do tatame alaranjado e das paredes violetas, ao som dos mantras calmos e vapores afrodisíacos de incenso kali danda. 

deve estar meditando shiva, sorvendo o ópio do corpo, sendo dragão e serpente, bija, semente.

e quem te prova, ou te relembra o gosto, voa num oceano, e transborda como as marés, de lua cheia, e vento quente, no leito frio.

quem te sorve deita num precipício, escolhe as correntes mornas ou turbulentas, não posso deixar, não posso aceitar, isto é só meu.

vou entrar e te estourar os miolos com suas próprias armas. os revólveres, serão última alternativa. não quero pólvoras de escopetas, não quero sons muito estridentes.

primeiro uso os tridentes, anéis com unhas de faca, escolho uma entre as espadas sem me esquecer dos punhais. pego suas algemas, enforcadeiras, zarabatanas com agulhas de veneno. destruo você e seu capacete de chakras cristais. derrubo seus sais, suas cinzas, suas tintas.

acabo com tudo que é seu, e não pode ser meu.

acabo com ela, e como na janta, minha presa, sob seu olhar de olhos sem cara, arrancados com os nervos em cima da mesa.

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