RUBRO NEGRO
Luís Valise

 
 

Eu nunca vi nada de mais no Nereu, mas as mulheres ficavam louquinhas por ele. Era o maior comedor da nossa turma, o que quer dizer do bairro inteiro, porque nossa turma só pensava nisso: buceta. Ninguém ali era vida-torta, todos trabalhavam, alguns até estudavam, ou iam à escola porque as minas também só iam por causa deles. Encontrávamo-nos todos os domingos e segundas à noite na padaria do Pardal. Estes dias eram sagrados, e não havia mulher no mundo que desviasse um de nós da padoca. Ali fazíamos o balanço da semana. Quem comeu quem, quando e como. Ninguém mentia, porque se fosse pego na mentira perdia a moral na hora. O pessoal ia chegando, o papo ia correndo fiado até que todos estivessem presentes, então o assunto ia sendo desviado mansamente, e era sempre o Nereu quem dava início: 

- Vocês não vão acreditar quem eu comi! Os olhares se arregalavam no suspense, não se ouvia um pio, até que ele revelasse: - Fulana! Dependendo da Fulana, o silêncio continuava enquanto Nereu dava detalhes do abate. Todos riam baixinho, comentários do tipo "Esse cara é foda!" viravam aperitivo entre goles de cerveja. Aos poucos os olhares se dirigiam para o Aderbal. Magro e alto, era goleiro reserva de um time pequeno, dos que pagam salário quando possível. Ele nunca tinha dinheiro pra sua parte nas despesas, mas ninguém ligava e alguém sempre aparecia em seu socorro. Era o segundo maior comedor. Quer dizer, poderia ser também o primeiro, mas pra isso teria que sair no braço com o Nereu, e nem tanto por medo, mas pelo trabalho que isso daria, ficava mesmo em segundo-com-honra. Ele fazia mais suspense ainda. Até a platéia começar:

- Fala logo, porra!

- Deixa de frescura e abre o jogo!

Aderbal dava mais um gole na ceva, limpava a garganta, era modesto e não economizava nos detalhes:

- Deu um puta trabalho! Uma puta duma mão-de-obra! Mas valeu a pena. Coisa de louco, tchutchuca, tetéia, tesão. Sem falar no irmão, soldado da Rota, passaporte pro inferno. Fiquei cevando três meses, pegando um cineminha, lanchinho no McDonalds, até quarta-feira passada. Morreu um tio da mina, a família foi passar a noite no velório, ela ficou sozinha. O irmão tava de serviço, o risco me deixou ainda mais tesudo, eu pedi pra ir no banheiro. Depois que eu tava lá dentro foi fácil como sempre. O problema é que eu não posso dispensar de prima, tenho que cozinhar o galo pelo menos mais um mês senão vai que ela cagüeta pro irmão e já viu, né, o cara é capaz de me dar um tiro no saco! A platéia atenta, babava, e os casos iam se sucedendo até chegar naqueles que quase não comiam ninguém. Era assim todos os domingos e segundas à noite. Dentro do balcão, Pardal ouvia as histórias e até incentivava, de olho no faturamento. 

Foi num mês de fevereiro que ela apareceu. A família vindo do interior alugou um sobrado duas ruas depois da padaria do Pardal. Na porta puseram uma placa: Dra. Maria Odete Plinx - Cirurgiã-Dentista. Maria Odete era a filha caçula de um casal que falava com sotaque estrangeiro, que vieram de Bauru para a capital montar consultório para a menina, como eles diziam. A "menina" era uma garota de pele clara e cabelos ruivos como a mãe, pernas torneadas, sorriso muito branco, uma belezura. Nereu foi logo marcando consulta, pois por um pitéuzinho daqueles "até injeção na gengiva", como disse num domingo à noite. Foi então que o Aderbal abriu o jogo:

- Nereu, então vai ser cara ou coroa, porque eu também marquei consulta. O ambiente pesou. Nereu engrossou:

- Porra nenhuma! Eu marquei primeiro! Nem vem! E se vier, vem com tudo, porque você é grande mas não é dois! Aderbal avaliou a situação por alguns segundos, que pareceram muitos. E filosofou, definitivo:

- Pode ficar. Buceta não vale uma amizade. Todos concordaram, anos de amizade não se acha a qualquer hora. Nereu deu um abraço sincero em Aderbal. Assunto encerrado.

Nereu saiu satisfeito da primeira consulta, o tratamento seria longo, muito tempo sem ir ao dentista. E antes de cada visita, Nereu tomava banho, fazia a barba, usava um perfume leve de pinho. E ficava quieto na cadeira, sem se queixar de nada, os olhos castanhos passeando pelo rosto bonito de Maria Odete. No começo ela ficava incomodada com aquele olhar, mas com o passar das semanas foi achando Nereu simpático, brincalhão, até que começou a olhar também para aqueles olhos castanhos. As mechas de cabelos ruivos incendiavam a imaginação de Nereu. Nunca tivera uma ruiva! Quando teria outra chance? Jogou uma conversa mole, que era o que Maria Odete esperava. Uma noite foram ao cinema. Nereu engatou um namoro. Coisa de alguns meses, até comer aqueles pentelhos de fogo. Mas as coisas nem sempre acontecem como queremos, e quando Nereu deu por si, estava apaixonado. Dormia e acordava pensando nos cabelos cor de cobre de Maria Odete. Deu pra faltar nos encontros da padaria. Até sumir de vez. Aderbal passou a ser o primeiro-comedor. Um dia Nereu apareceu com os convites do casamento. Depois da igreja, os noivos terão a honra de recebê-los na sede do Mercúrio Futebol Clube para um coquetel. Coquetel? O Nereu tava pirado.

A noiva estava linda. Entrou na igreja de braço dado com o pai. A grinalda de flores brancas realçava o vermelho dos cabelos, e quase que Nereu fica de pau duro no altar. Depois foram todos para a festa, os noivos dançaram a valsa, até o Aderbal dançou uma música com a noiva, com todo o respeito e o olhar caçador do Nereu marcando de perto. Nereu bebeu pouco pra não vacilar no cumprimento do dever. Os noivos foram para um hotel, debaixo de palmas, vivas, e punhados de arroz.

No hotel, Nereu caprichou no banho e voltou perfumado, pijama de seda, olhos acesos. Maria Odete foi para o banheiro. Nereu abriu a champanhe e mal conseguia segurar o arroubo. E eis que surge a noiva. Maria Odete estava linda numa camisola de rendas, semi-transparente. Nereu ofereceu uma taça de champanhe para ela, e fez um brinde:

- Aos teus cabelos de fogo, que me queimam o coração!

Tomaram alguns goles da bebida. Então Nereu se levantou e abraçou Maria Odete. Uma onda de calor tomou conta dos dois, e Nereu rapidamente tirou o paletó do pijama. Abaixou as alças da camisolinha, que escorregou, ficando pendurada nos bicos tesos dos seios de Maria Odete. Mais alguns agarrões, e a camisola desceu enrodilhada nos pés de unhas vermelhas. Nereu buscou o monte de feno reluzente da sua paixão e ficou estarrecido com o que viu: pêlos espessos, sedosos... e pretos! Negros, mesmo! Os pentelhos de Maria Odete eram pretos! A moça percebeu o espanto no noivo, e tentou deixá-lo relaxado:

- Gostou, benzinho? Guardei tudinho só pra você. Nereu conseguiu articular:

- Mas como teus pêlos são pretos, se você é ruiva? Maria Odete riu:

- Ruiva tingida, amor. Eu sou mesmo é morena. Cabelos pretinhos. Minha mãe sempre tingiu os cabelos, então eu tingi também para ficar mais parecida com ela.

Nereu levou-a para a cama, deitou-a e apagou a luz. Fez amor com fúria e lágrimas nos olhos.

 
 

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