PAIXÃO DE PELE
Wesley Nogueira

Acordou naquele dia como acordava nos últimos meses, parecia que não tinha nem dormido, e na verdade, tinha muito pouco, estava acostumado a ficar deitado na cama, olhando para as linhas de luz que passavam pela cortina e projetavam-se na parede e no teto do quarto por horas e horas, pensando nela, na falta que ela fazia. 

Não que a separação tivesse sido evitável, eles não mais se suportavam, nunca chegaram a casar de papel passado, mas dividiram a mesma casa e a mesma cama por quase três anos, ambos trabalhavam, e do ponto de vista financeiro, não passavam tanto aperto, claro que não dava para ter todos os luxos que a vida pudesse proporcionar, ele mesmo nunca ligava muito para luxos, roupas caras, pra ele apenas ter como pagar as contas, o dinheiro para colocar gasolina no carro e sobrar algum pra um cinema ou comprar seus pequenos hobbies já bastava, nisso diferia dela, ela sempre estava de olho no futuro, sempre queria mais, enquanto ele exercia um cargo técnico com salário fixo e poucas perspectivas de melhora, ela era uma vendedora de mão cheia, agressiva, que fazia tudo para fechar um negócio e tirar sua comissão no fim do mês. 

Ela odiava aquele jeito conformista dele, sem grandes ambições, apesar de reconhecer o talento profissional que ele tinha, com o tempo foi se convencendo que o conformismo dele não faria com que ele progredisse na vida. Essas diferenças acabaram também por vir a influenciar na vida pessoal e na relação com a família dele, ela sempre independente, morava distante dos pais, e raramente tinha noticias deles, a não ser por um telefonema esporádico, enquanto ele, praticamente todo dia arranjava uma desculpa para passar na casa da Mãe, ver o irmão e as sobrinhas ou conversar com o pai. 

Ela odiava especialmente as tardes de Domingo, quando ele a arrastava para almoçar com os pais dele, na grande mesa, comer o frango ou a macarronada que ele adorava, ela tinha de admitir que o sabor da comida era ótimo, mas não gostava da companhia da mulher do irmão dele, casada na igreja e com filhos, e achava que a mãe dele não ia muito com a cara dela, ou se ia, achava meio perturbador eles viverem juntos sem terem outro compromisso senão o amor que os unia.

Tudo isso desgastava o relacionamento deles, e uma oferta para gerenciar uma filial em outro estado acabou pondo fim ao relacionamento, essa oferta demonstrou que eles tinham ambições de vida diferentes, por ele ficar nos carros populares e ter seu Domingo de macarronada com a família estava ótimo, enquanto ela ambicionava os carros importados e as viagens ao exterior, ela queria subir na vida, e cada vez mais achava que ele era um empecilho. 

As vezes se perguntava porque se apaixonara por ele, e de forma tão forte, para desistir de dividir o apartamento com uma amiga e ir morar junto, encontrou essa resposta no jeito carinhoso dele, na forma cavalheiresca de agir que ele teve desde o primeiro encontro, no sorriso aberto, na forma que sempre a fazia rir, e com o tempo e a intimidade, do jeito delicioso como eles faziam amor, não que fosse só mérito dele, mas na hora de amar eles pareciam estar interligados, ele parecia ler os pensamentos dela e ela os dele, antes dela pedir ele já parecia antecipar os desejos dela, e ela também aprendera a se antecipar ao que ele ia desejar, sem nunca caírem na rotina, cada dia o prazer parecia aumentar mais, mesmo quando discutiam, o sexo os reaproximava, um era o afrodisíaco do outro, era algo de pele, ele amava as curvas generosas do corpo dela, onde alguns viam uma mulher um tanto roliça demais para uma estatura pequena, mas ele via a sua musa, com o amor e o desejo dele, ela aprendera a valorizar-se mesmo não tendo o corpo esguio e alto que a moda ditava, adorava a forma como ele a valorizava, as massagens que começavam terapêuticas e acabavam sendo eróticas, massagens que as firmes mas macias mãos dele faziam nela, adorava também esquecer da vida e dormir por sobre o peito cabeludo e macio dele depois de fazerem amor.

Do outro lado ele sentira por ela desde o primeiro momento uma atração irresistível, aquele olhar meio maroto, meio provocante, a forma como ela torcia o canto do lábio enquanto ouvia ele falar, as vezes que ela mordia o lábio inferior num pré-sorriso, a forma quase selvagem com que trocaram os primeiros beijos, os primeiros amassos que pareciam ser elétricos, as primeiras vezes que fizeram amor, ele experiente, ficou desconcertado ao notar que para ela também não era novidade o sexo, mas se surpreendeu ao notar que isso não incomodava tanto como ele pensava.

Tudo foi muito rápido, e quando ele viu, já não queria mais deixar ela em casa após uma noitada, ele queria simplesmente acordar e sentir a presença dela ao seu lado, e por isso propôs morar juntos, ele teve de adaptar-se a dividir seu recanto sagrado com ela, mas no início tudo era maravilhoso, achava bonitinho o ressonar dela enquanto ela dormia, estimulante a guerra de quem entrava primeiro no banheiro de manhã, e até não ligava quando ele vencia essa guerrinha particular, e ela meio melosa, perguntava de fora do banheiro se ele ainda ia demorar. 

Ele perdeu a liberdade mas ganhou uma companheira, era assim que pensava, mas o tempo começou o desgaste, a forma meio sarcástica com que ele falava da família que ele adorava, a mania compulsiva dela de trocar todos os moveis de lugar, quase todos os meses, o que trazia ainda mais transtornos pelo espaço reduzido do apartamento, que aliás ela sempre fazia questão de reclamar, justamente do apartamento do qual ele se orgulhava de já ser proprietário, mas que para ela mal passava um quarto e sala, o que ele chamava de aconchegante, ela simplesmente chamava de apertado.

Essas diferenças de pensamento e de comportamento começaram a minar o relacionamento, enquanto o perfil dele era tímido e acomodado, o dela era expansivo e ambicioso, enquanto para ele o trabalho era mais uma forma de conseguir o sustento, para ela era um desafio e uma forma de alcançar objetivos, até o perfil de cada um colaborava para isso, ele, filho de pais classe média, sempre teve bons colégios, vida facilitada, já ela, filha de pais bem mais modestos, sempre teve de ralar muito para conseguir alguma coisa da vida, e por isso tinha essa gana toda de conseguir sempre mais.

Dois acontecimentos minaram o relacionamento de forma definitiva, ela sempre lhe atazanava a paciência ao cobrar-lhe mais progresso na empresa, e ele nunca ligou muito, gostava do trabalho como estava, até que um dia ela mesma se encarregou, durante uma festa de confraternização da empresa, em cobrar do patrão dele alguma melhora, ele sentiu-se ridículo, vendo a mulher tomar-lhe a frente e debater com o patrão sobre salários e cargos, sentiu-se como uma criança que acompanhava a mãe numa reunião de pais e mestres, neste dia ele começou a questionar a relação deles, e após isso, viu a implicância dela com seus pais, ela sempre questionava que os pais gostavam mais do irmão dele, que enquanto o pai presenteou o irmão com uma bela casa, de muitos cômodos, eles dois ainda tinham que dividir aquele pequeno apartamento, as discussões esporádicas, tornaram-se constantes e sempre variando sobre os mesmos temas, o sexo continuava uma maravilha, isso ele não podia negar, mas eles não se olhavam mais sem temer uma cobrança ou um rancor.

A oferta de emprego em outro estado foi mais uma desculpa para acabarem com tudo, dividirem suas vidas, ir cada um para o seu lado, o extremo cuidado que eles tiveram em não ter filhos agora revelava seu motivo, tanto ele como ela, inconscientemente, não queriam laços, pois pareciam saber que o poder afrodisíaco que os uniu um dia seria separado pela diferença de objetivos e estilo de vida. 

Agora, ele estava ali, alguns meses depois, lembrando da última noite que passaram juntos, depois de alguns dias de brigas e acusações mútuas, algumas coisas dela já tinham viajado, outras ela tinha dado ou vendido, e só algumas malas arrumadas esperavam para saírem com ela.

Ele desistira de levá-la ao aeroporto, um vôo que sairia antes do sol nascer, secretamente ele pensava nela perder o vôo, mas sabia que isso não mudaria nada, até ela pensava em desistir as vezes, mas era só um pensamento insano, ambos estavam meio feridos, mas queriam muito guardar uma boa lembrança um do outro, e nesta última noite, sem combinarem verbalmente, fizeram amor de forma louca, ou melhor fizeram sexo, já que não se permitiam pensar no amor, fizeram sexo desesperadamente, até a exaustão, e além dela.

Quando faltava apenas uma hora para chegar ao aeroporto, ela levantou, se vestiu, ligou para o rádio taxi, depois para o porteiro da noite, para ajuda-la com as malas. 

Ele nem se mexeu, ficou na cama, ainda nu, numa antítese do cavalheiro que ele sempre foi, não levantou para ajudar, ela compreendeu o gesto até com carinho, ao olhar tudo e antes de sair, veio até ele, e o beijou na testa, e disse:

- Não é culpa de ninguém, só não deu certo, vou rezar pra sermos muito felizes, Boa Sorte, nunca vou te esquecer...

E assim ela partiu, na primeira semana nem se ligaram, depois o telefone tocou, e eles conversavam sobre amenidades, sobre a cidade nova, seu novo emprego, evitaram falar de amor e de saudade, mas ambos sabiam da falta que faziam um ao outro, às vezes se ligavam, dividiam as contas de interurbano, geralmente à noite, quando estavam em casa e a tarifa era mais baixa. Pegavam-se conversando amenidades por horas, só para saber de um e de outro, evitavam falar sobre namoros, até mesmo em outras pessoas. 

Ela na verdade afundara-se no trabalho e a não ser por alguns olhares, por muito tempo não planejava se aproximar de ninguém, ele por sua vez tentou nos primeiros dias flertar à vontade e até conseguiu uma admiradora no escritório, a levara para jantar e começaram a trocar carícias, mas aquele corpo era mais esbelto e menos opulento ao que estava acostumado, algo parecia não encaixar, e ele não encontrou o ponto ideal, apesar de um certo encorajamento dela, a deixou em casa com um agradecimento.

Saindo desses pensamentos, ele olhou para o relógio, tinha de ir trabalhar, mas tinha um pensamento fixo, precisava tirar férias, e viajar, de uma hora para outra ele queria viajar, para outro estado, para outra cidade, não qualquer estado ou cidade, mas para a cidade que aparecia tanto na sua conta telefônica.

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