VIVA COMIGO. SÓ.
Carlos de Paula

Sabe, há um tempinho ando querendo falar isso tudo com alguém. Só que com ninguém eu fico à vontade assim, do jeito que me sinto com você. Conforme-se como puder, mas foi escolhida como vítima. 

Nem é tanto tempo, não. Afinal, foi no dia 28 de junho de 2002, poucos dias antes do assim chamado Penta, que meu filho concretizou sua resolução de sair desta vida. Hoje estamos vivendo o décimo dia do mês de setembro de 2002, nem são passados três meses. A carga é que é pesada.

Talvez seja difícil para você acreditar, mas o peso maior não vem da perda física, nem tampouco daquele outro item que a derrota facilmente, o desencontro espiritual. O pior de tudo, o mais pesado, o que mais oprime é a faca de dois gumes. E eu supostamente deveria ter vergonha de dizer isso. Mas não tenho. Digo, assumindo minha condição de espírito encarnado, que minha dor maior de todos os dias é vê-los chegando perto de mim, esticando seus braços, me envolvendo carinhosamente e perguntando, com os olhos nitidamente voltados para mim sem meu filho por aqui: "Como é que você está?".

Porra, meus amigos, por favor! O que é que vocês querem de mim, sim? Que eu olhe a faca e afirme entender o gume da fraternidade, do companheirismo, da solidariedade, do ombro amigo? Pois bem, eu entendo, eu o sinto, o aceito, quase gosto dele. 

É por vê-lo e quase apreciá-lo que não consigo dizer: "Chega!". Pois o "Basta!" vale apenas para o gume que me rasga o coração. O gume que se une à ponta da faca e me corta, me perfura a alma quando me faz pensar na perda mais tempo do que o normal.

Minha amiga e confidente, ouça este grito e corra, arauto da verdade, e vá dizer para todo o mundo que meu filho tinha dezenove anos de idade terrestre, cursava o terceiro ano de Direito na UnB, era inteligente de um jeito quase doído de ser, lia todos os livros que leu o pai menino e mais alguns de lambuja, escrevia bem para caramba, e não deixou substituto. Então, amiga minha, confidente de meu coração, peça para eles pararem de me perguntar como eu estou. Porque, puta que pariu, eu não faço a menor idéia de como estou. Só sei que estou. Saibam desde agora que estou e sempre estarei. Mas não me perguntem como.

O que fazer, como ajudar, o que você espera de nós, são as perguntas que leio em sua mente, querida minha. Viva comigo. Só. Vamos tomar todos os chopps já reservados para nós; cantar aquelas músicas todas, mesmo, aliás, principalmente com voz pastosa; nadar nos rios, nos lagos, nas represas, nas piscinas, nas praias; pular sobre os córregos; saltar nos poços naturais; caminhar nas pistas de Cooper, nas ruas das cidades, nas trilhas no meio do mato; entrar nas cavernas e percorrê-las; fazer rapel nas paredes das montanhas, nas cachoeiras; acampar no meio do mato mais escuro, tão negro que possamos ver todas as estrelas do céu; contar piada, de salão, pesada, suja; cuidar dos filhos que também estão aqui, sabe-se lá como, os seus, a minha, os dos outros, cuidar, cuidar, cuidar, orar. E vigiar. Vigiar sempre nossa mente, nossa atitude, a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo, vigiar.

Amiga, diga-lhes que estou bem quando eles, quando todos vocês vivem. Comigo. Só.

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