NOITE DE ESTRELAS
Marco Brito

Noite de estrelas, ruas quase desertas. O trinado do guarda noturno dilui-se pelos becos. Os sapatos do homem apressam-se pela calçada. Ecoam no interior da sua cabeça. Emudecem o ciciar dos grilos enquanto cortam caminho pelo parque. O coração disparado faz o sangue latejar nas têmporas. Gotas de suor escorrem pela testa e pescoço encharcando a gola da blusa pólo que usa. Os olhos ainda parecem ver a expressão de surpresa do oponente. Ele não queria aquilo, mas houve a reação. Seria ele ou o outro. Além disso, ela não merecia isso. Nem ele merecia. Até o sujeito que lá ficara - este também não merecia.

Parou de andar às voltas. Sentou num banco do jardim. As estrelas brilhavam lá do alto. Pareciam estar tão imóveis quanto os olhos do sujeito que deixara para trás. A imagem do rosto crispado, fitando o vazio, era tudo que tinha na memória. Não, não era a única coisa. A expressão dela também ficara marcada. O prazer pela dor.

Desde o início que não achara boa idéia. Conhecia os dois já há algum tempo.Tornara-se amigo, tinha a confiança de ambos. Fora cúmplice deles.

Aí veio o acidente...

Os flashs lhe vinham à mente, as cenas do carro destruído, o corpo preso às ferragens retorcidas, o cheiro de gasolina e carne queimada...

Depois, o sofrimento, o coma, a lenta e dolorosa recuperação e as seqüelas. A psicoterapia de apoio, a fisioterapia. A dura realidade na revelação do médico assistente: a paraplegia. As muletas. Ou cadeira de rodas.

A dedicação dela, o carinho da companhia e a depressão.

Ele já não suportava. Não suportava mais o sofrimento do outro. Mas ficou. Acabou sendo o apoio do casal.

Em seguida vieram as confidências, as carências, e o medo de um, o medo do outro. E ele lá, no meio dos dois.

Pior, veio o desabafo do amigo:

- "Ela vai precisar de sexo. Sei que vai. Não vai agüentar pelo resto da vida".

Soava como um pedido mudo. Ou será que ele é que pensara assim?

Olhou para o companheiro como que procurando uma confirmação. Esta não veio, não soube o que dizer. Nunca houvera passado aquilo pela sua cabeça, nunca. Nunca a vira com outros olhos. Jamais prestara atenção no quanto era bonita e sedutora. E gostosa, muito gostosa.

Aturdido, afastou-se. Por um momento distanciara-se.

Algum tempo se passou. Mais tarde voltara a atender aos telefonemas, a responder aos convites para jantar, ao jogo de cartas...

Naquele dia foi assim. Tinha-o acompanhado à hidromassagem. Saíram, fizeram compras, passaram numa locadora e voltaram para casa. Já tarde da noite, a fita no meio do enredo, ele levanta-se e avisa que vai embora. O amigo pede à mulher para que o acompanhe até a cama e esta sugere que ele a aguarde para acompanhá-lo até o portão. Demora um tanto lá dentro. Quando retorna, o convida para um último drinque na cozinha. Era comum acontecer isto. O insólito foi assistir a um lento e excitante strip-tease. A TV ligada na sala, a sombra da cadeira de rodas projetando-se nas paredes...

Nada de extraordinário nele em ceder e ter-se debruçado sobre ela. Estava encostado no balcão da pia...

O resto vocês já sabem. É sempre uma faca de dois gumes.

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