DE FACA OU DE SUSTO
May Parreira e Ferreira

Muitas coisas acontecem no universo no mesmo instante do espirro. Enquanto escrevo a palavra céu, quantos não estarão nascendo, outros tantos morrendo. Um que desejasse conhecer as canções de uma mesma escala musical, chegaria ao final de seus dias sem ouvir todas as melodias. Grande e infinito o mistério da vida. 

Cresci ouvindo que era meu pai quem se levantava durante a noite para me levar à mamadeira. Orgulho e vaidade perante minha irmã mais nova, era eu a escolhida do rei. Depois de adulta descobri que o rei ninava a princesa para que a rainha descansasse com um sono ininterrupto. Quando minha mãe-rainha confirmou a história, foi uma pontada no coração, uma des-ilusão porque uma vez iludida. Precisei de tempo razoavelmente longo para me aprumar e adquirir nova identidade como um ser não divisível. 

Louvor à minha mãe por ter-me feito acreditar, sabendo ela, ainda que de maneira instintiva, quem era quem nos complexos edipianos.

Quando levei a filha pela primeira vez à escola maternal, enfrentei seu olhar de tristeza e abandono, eu a tinha lançado num mundo povoado de seres diferentes e necessários para que ela conhecesse os domínios fora do ninho. Muitas vezes parecemos cruéis quando estamos sendo humanos. O que pode ser alimento para alguns, será veneno para outros, assim é a lei universal. 

Diferentes lados da mesma moeda, faca afiada, navalha de dois gumes. A mesma criança que eu agrado pode, por qualquer infortúnio meu ou dela, ser o pivete que enfia o estilete em meu pescoço. Como entender o mistério, como estar lá e cá da linha imaginária.

Passamos a vida a idealizar, e pessoas são apenas pessoa, feitas das mesmas fibras e dos mesmos ares. Tendemos a ficar deprimidos, achar que o céu desabou na nossa cabeça, que a fresta de luz se esvaiu, quando nos decepcionamos, quando o tombo é tão alto quanto o coqueiro. Torres de concreto e aço se mostram firmes como grandes manjares com ameixas, tombam desajeitadas diante da perplexidade. O tempo não nos apaga as imagens, em qualquer lugar, existe o tudo. Nos espera o quê. Eu havia quase acreditado no mundo azul, acordei com a leve sensação da hipótese, e vou dormir sem saber se o final virá de faca ou de susto. 

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