FACA-DE-DOIS
Umberto Krenak

Ergueu a faca acima de sua cabeça.

Segurou-a firmemente e olhou para baixo: a moça amordaçada, amarrada sobre o altar; olhos arregalados movendo-se descompassadamente de um lado para outro.

Seus dedos latejavam sobre o cabo de chifre.

Uma onda de prazer percorreu-lhe a espinha quando baixou pesadamente as mãos e sentiu a carne rasgada. 

As vestes se tingiram de vermelho, o corpo estremeceu e a boca se abriu num grito silencioso, sufocado pelo chumaço de pano.

Com o coração aos pulos, suando, Gumercindo sentou na cama, abriu os olhos e puxou os lençóis para certificar-se de que era apenas mais um daqueles terríveis pesadelos.

Silêncio. 

Apurou os ouvidos. Um leve ruído parecia vir da sala. Tateou em busca da arma, debaixo do colchão.

Na absoluta escuridão, guiou-se pela memória, esgueirando-se pelo corredor; aproximou-se da porta: definitivamente, alguma coisa se movia na sala!

Com a máxima cautela, arrastou-se para detrás do sofá, deixando apenas o topo da cabeça desprotegido. 

Não conseguia ver um palmo à frente. O barulho vinha do outro lado, baixo mas constante, como um arranhar de papéis. “Será a minha imaginação?” Ficou de pé, imóvel, mimetizado pela escuridão da parede.

A seguir, novo silêncio, gradualmente cortado por um arfar em surdina, cada vez mais próximo.

Pensou na filha dormindo no quarto ao lado: “Meu Deus, Aline não! Não permita, Senhor!” 

Podia sentir o calor; seja lá o que fosse, agora estava ali, na sua frente.

Com as mãos trêmulas, ergueu o revólver e apontou. 

“PAI!!!”

A luz se acendeu.

Mas ele nem chegou a ver a filha com as mãos no interruptor.

Apenas o lampejo fugaz da lâmina, seu corpo sendo puxado com brutalidade, o toque frio e lancinante do metal dilacerando-lhe o pescoço e o súbito apagar do mundo.

fale com o autor

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.