A PRIMEIRA REUNIÃO

Carlos C. Alberts

Brasília, edifício do Serviço Nacional de Inteligência

"Entra na sala o Coronel Carlos Alberto..."

- Desligue isto. Esta reunião não será gravada.

Diz o Coronel. Cabelo e bigodes começando a ficar grisalhos. Apesar da patente, usa terno claro e gravata bege. Bronzeado. "Como ele consegue?", pensa o agente Mauricio Cintra: "ele fica aqui dia e noite".

- Esta é a primeira reunião para decidirmos se investigamos ou não o conteúdo da mensagem recebida ontem na minha caixa de entrada de e-mails. Além do conteúdo, existe o fato, extremamente grave, de terem conseguido enviar uma mensagem diretamente para mim, de maneira aparentemente simples. Todos fizeram o que pedi?

Os agentes presentes balançaram a cabeça afirmativamente.

- Por favor, agente Luiz Moura, leia o conteúdo da mensagem.

Pediu o Coronel.

- Pois não.

Disse Moura e passou a ler.

"São Paulo, 22 de Fevereiro de 2002

Estou escrevendo esta mensagem porque sei que é do seu interesse. Estou internado em uma clínica para pessoas com distúrbios emocionais. Acho que fica na Serra da Cantareira, pelo que vejo da janela de meu quarto. Tenho muita dificuldade em me comunicar com o mundo exterior e esta mensagem me custou uma soma astronômica. Meu nome verdadeiro, com o qual fui batizado é Pavel Ornievski Milov, mas todos me conheciam por Pav. Nasci na atual República Checa, na cidade de Brno, em 12 de Abril de 1742. Sim, 1742. Eu sou o que é popularmente conhecido como Vampiro. Ou seja, eu me alimento de sangue, sou virtualmente imortal e não posso ser exposto ao sol. 

Estou nesta clínica não sei bem porque. Imaginei, quando fui preso, que seria executado imediatamente. Ao contrário, embora não possa sair daqui, sou muito bem tratado. Tenho ótimas acomodações. As refeições são muito boas (os vampiros têm que comer, sim). Tenho acesso aos canais a cabo, acho que de todas as operadoras. Posso surfar pela Internet, ainda que me seja vedado enviar qualquer mensagem. Me permitiram manter minhas gatinhas, Mirina e Rosel. Recebo uma bolsa de sangue total e duas de hemácias com plaquetas, toda semana. Eu preferiria por via oral mas, aparentemente, meus captores acham isso perturbador. Recebo, portanto, por via intravenosa. Duas vezes por semana, vêm algumas pessoas vestidas de branco e recolhem material para exames (eu suponho). Passam um cotonete em minha boca; recolhem sangue, fazem alguns testes físicos e, uma vez, um teste psicológico.

Há quarenta anos, adotei o nome de Wiliam Engel. Mesmo estando ha cerca de 130 anos no Brasil, ainda tenho algum sotaque. Por isso resolvi usar um sobrenome estrangeiro. É com este nome que estou registrado nesta clínica. Minha "irmã", que nunca vi antes e diz chamar-se Anna Christina Engel, é a responsável por minha internação. 

Aos cento e doze anos de idade, comecei a tentar compreender o que era, de onde vinha e para que serviria esta minha condição. No início estudei os mitos e lendas sobre vampiros em muitas culturas. Viajei muito. Não descobri nada que pudesse responder às minhas dúvidas. Depois, comecei a estudar os vampiros e demais morcegos. Como zoólogo, descobri apenas que os parentes mais próximos dos morcegos hematófagos são os nectarífagos e não os carnívoros, como pode parecer à primeira vista.

O motivo para escrever-lhes, além da minha situação atual, é que nos últimos vinte anos tenho seguido uma carreira como hematologista. Estava tentando entender, do ponto de vista fisiológico e anatômico, o que ocorre comigo, o porque de ser um vampiro. Até onde cheguei, descobri tratar-se de um vírus que altera o DNA das células do meu fígado. Esta alteração aparentemente permite uma limpeza total de meu sangue, tirando todos os fatores que levam a degeneração do meu corpo, como radicais livres e outras toxinas. O problema é que meu fígado destrói também minhas hemácias. Assim, preciso repô-las. Por isto preciso de sangue. De outros mamíferos já ajuda. Bem melhor se for de humanos. De preferência do meu próprio grupo sangüíneo, AB+. Chamei o vírus de PVT. Antigamente precisava matar para saciar minha necessidade por hemácias. Já faz mais de quinze anos que não mato ninguém, o que me deixa muito satisfeito. Como hematologista, criei meu próprio banco de sangue e, assim sempre tinha um estoque necessário. Nas minhas pesquisas, descobri que o vírus pode ser transmitido pela minha saliva. Mas só depois de repetidas inoculações, que ocorrem com as mordidas. Preciso explicar que morcegos não sugam o sangue de suas vítimas através destas mordida. Normalmente, eu primeiro matava minha presa (geralmente com um punhal no coração). Depois cortava uma artéria e recolhia o sangue com um tipo de seringa, só que bem maior. Dois litros são suficientes para uma semana ou mais. Minha primeira esposa, uma italiana que chamarei aqui de Bárbara, foi quem me passou o vírus. Eu o passei para minha segunda esposa, Regina, ha cerca de 180 anos, em Portugal. Não as vejo há mais de cinqüenta anos. Sinto saudades. 

Enfim, o que os homens de branco querem, imagino, é descobrir o que eu já sei. O vírus. Naturalmente não falei nada para eles. 

Por imaginar que vocês seriam os únicos a poderem me ajudar, mando estas informações. Mas um aviso: logo, com a tecnologia que dispõem, vão descobrir sobre o vírus. Neste momento, não terei mais utilidade para eles. Nem para vocês.

Sinceramente 
Pav O. Milov"

- Muito bem senhores. Relatórios. Você primeiro agente Cintra. - Disse o Coronel Carlos Alberto, apontando para o homem no fundo da sala. Este começou.

- Na Clínica Rosi Luna de Recuperação, existe um Wiliam Engel internado com diagnóstico de esgotamento nervoso. Segundo a irmã, Anna Christina, o Dr. Wiliam sofre de porfiria, uma doença rara, onde o número de hemácias é muito baixo. Desde criança teve que receber transfusões. É muito pálido e extremamente sensível à luz do sol. Praticamente só pode sair à noite. Ao tornar-se adulto, obcecado com sua doença, tornou-se hematologista e desenvolve pesquisa de alto nível em sua própria clínica. Há cerca de dois meses, o excesso de trabalho causou uma estafa. Continuou trabalhando assim mesmo e teve um ataque nervoso. Foi internado e, aparentemente sofre alucinações. Talvez devido aos anti-depressivos que toma. Ela parece gostar muito dele.

- Obrigado, Maurício. Agora você, Luiz.

Disse o Coronel, olhando para o homem sentado a seu lado.

- Nossa investigação demonstrou que tudo parece bastante correto com o Dr. Wiliam e sua irmã. A única discrepância é o tamanho da fortuna de ambos. É desproporcional tanto ao trabalho dele como ao dela (que é escritora). Parece que receberam uma herança de um avô, Jo (de Joseph) Engel. 

- Averigüe a fundo, Lula.

Disse o Coronel e ia sentar-se quando foi interrompido por uma jovem agente.

- Este homem é apenas um louco. Por que estamos perdendo tempo com isto? Acho que deveríamos apenas saber como ele teve acesso à caixa postal.

Todos olharam para a agente Raquel, recém chegada aos "calabouços" como era conhecida aquela divisão do Serviço Nacional.

- Calma.

Disse o Coronel e emendou, apontando para uma mulher encostada na parede. 

- Agora você, Mariazinha.

- Nossa agente na Europa, codinome Ivone, deslocou-se ontem mesmo para a Republica Checa e descobriu, entre antigos registros da Catedral de Brno, o nome de Pavel Ornievski Milov, nascido em 12 de Abril de 1742. Em 17 de maio de 1771, casou-se com uma italiana, Hélena De Angelis. Não há mais registros sobre qualquer deles em Brno. Mas Ivone vai continuar sua busca em Portugal.

Todos ficaram calados por alguns segundos. O Coronel, então, levantou-se e disse.

- Acho que todos concordam que devemos investigar mais.

Ninguém discordou. Nem discordaria, ele era o chefe.

- Hoje vou me reunir com o General Adalberto Muniz e discutir o assunto. Lula, você investigue mais a fundo a fortuna dos dois. Agora. 

- Os outros fiquem aqui, que quero lhes passar tarefas específicas.

- Sim senhor, Coronel.

Disse o agente Luiz e saiu da sala. Do lado de fora, pegou seu celular com linha encriptada, teclou um número, esperou e disse.

- Foi uma ótima idéia fornecer a senha do e-mail do Coronel e deixar que a enfermeira Lúcia Bruna permitisse ao Pav escrever a mensagem. Eles vão investigar. Sejam rápidos. Eu já sei o que é. Vai ficar mais fácil vocês procurarem. Logo não precisaremos mais de nosso amigo Pav. 

Na sala, reunidos em torno do viva voz, os outros agentes ouviram todas as palavras de Lula.

- Mau, não deixe que ele chegue ao estacionamento. Faça o que for preciso. Mas sem escândalos desta vez. Os outros sabem o que fazer. O avião da FAB está esperando para levá-los a São Paulo.

Enquanto Cintra saía apressado e com um sorriso nos lábios, o Coronel levantou-se, ajeitou a gravata, abotoou o paletó e, dirigindo-se à agente Raquel, disse.

- Você bem que nos avisou sobre ele. Foi um ótimo trabalho. Vamos tomar alguma coisa?

Raquel sorriu e pegou o braço que ele lhe estendia.

Começava o Happy Hour em Brasília.

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