RAPAZOTE

Márcia Cardador

Foi olhando o bichinho ali parado, bicando jabuticaba, que eu lembrei do rapazote que morava duas ruas abaixo. Passava lá em casa só à noite, já meio tarde, quando não tinha quase movimento. Eu ainda estava na varanda, balangando na cadeira e pensando na vida. Ele parava perto do portão e dava um "Noite, seu Tonho". Chamava atenção pelo rosto feio e pela magreza. Pedia umas jabuticabas. Adorava, comia até não agüentar mais. Não era de muita conversa, mas quando falava olhava assim prá gente, prestando atenção na resposta, parecia que esperava o eco das palavras. A cabeça chega virava um pouquinho de lado. Não demorava muito, agradecia as jabuticabas e ia embora como chegara, "Noite, seu Tonho". Era boa gente.

Nunca mais vi. Alguém contou que a família mudou lá pro interior. Hoje à noite na varanda foi que lembrei dele. E lembrei da leve inquietação que sentia quando olhava para ele. Um ar de mistério, ou de noite, ou de sei lá o quê. Um certo desconforto, como alguma coisa que não se encaixa, como se o rosto feio desmentisse o olhar, como se a solidão da noite desmentisse a idade, como se a magreza desmentisse as jabuticabas. Vai ver que era só o jeito do rapaz. Só sei que, olhando o morceguinho, me lembrei dele.

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