BREVE (E INÉDITO) INTERREGNO
NA VIDA DO MOCEGÔMEM

Marco Aurélio Brasil Lima

Àquela hora da noite naquela obscura quebrada o motorista não costumava parar o ônibus, mas não resistiu à cena insólita, o homem enorme, capa escura flamulando ao vento, o braço esticado. Parou metros à frente. Morcegômem andou até a porta. Seus pequenos olhos brancos estreitaram no negrume da máscara. O motorista fez uma cara de "e aí? Tem jeito?". Só então Morcegômem subiu.

Seu peso fez o piso ranger, as orelhas pontudas da máscara tocando o teto o obrigaram a curvar levemente a cabeça enquanto encaminhava-se para a roleta e o motorista partia. Lá no fundo, o pagode dos office boys sofreu natural interrupção, despertada pela curiosidade geral.

O cobrador não encarou muito Morcegômem, ficou na dele. 

- Quanto é?

- Um e quarenta.

O herói enfiou os dedos pelas insondáveis frestas do fantástico cinto, estendeu a nota que tirou, pegou as moedas que o cobrador lhe estendeu de volta, guardou em outro insondável ponto do tal cinto e passou a catraca sondando soturnamente o ambiente. Por fim, largou o corpanzil em um dos bancos de plástico. 

Passado o impacto da novidade, os office boys tornaram ao batuque e os poucos demais passageiros trocaram olhares.

Morcegômem nem percebeu quando deixou escapar um profundo suspiro. O Morcegomóvel quebrado após uma insana luta com o execrável Miséria, o corte profundo nas costas, queimando sua pele, o celular fora de área, Alfred que não atendia ao chamado, que dia, que dia. 

Aonde aquilo o levaria? Anos e anos de ingente batalha contra o mal e o mundo parecia cada dia pior. Seus inimigos se multiplicavam, disputavam sua cabeça como prêmio, o homem cada vez mais mesquinho, mais torpe, egoísta, aquele país sem auto-estima, sempre à cata de outros heróis, novos heróis, diferentes heróis. Pobre mundo o que dependia de heróis!

A crise não durou muito, porque era hora de descer. Num pulo se pôs de pé, deu o sinal mas não aguardou o coletivo parar, saltou pela janela mesmo com impressionante rapidez. 

Houve nova interrupção no pagode. O cobrador aproveitou e vaticinou:

- E eu enrolei ele no troco.

Todos riram.

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