QUEM TEM MEDO DE LOBO MAU?
Alberto Carmo

- Onde a gente parou mesmo? - perguntou Cássio.

- Na parte em que o pessoal estava rezando pra chover. Acho que era na página 49.

No fundo do vale, reuniram os velhos e as crianças, todos vestidos de branco. Uma anciã jogava ervas e flores na beira do mar. Seriam recolhidas  pela maré da noite. Os cabelos argentinos teciam linhas invisíveis na brisa seca. Ao seu redor, surgiam cânticos harmoniosos, num ralentando quase gregoriano. 

Os jovens ficaram a cerca de 50 metros. Cada um trazia um tripé e uma tela branca. Aos poucos, nelas brotavam segundos distintos da mesma paisagem. Ondas breves, espumas passageiras. Cada pincel era um olhar único, marcado pelos grandes ponteiros do enorme relógio que observava acima da colina. A paisagem ia-se formando em golfadas vivas de tinta. O movimento passava de pincel a pincel. O silêncio era absoluto, rompido apenas por um tom mais forte, logo espalhado com mesclas de tons mais calmos. As crianças corriam pela areia e cada um as capturava em diferentes passos. O enredo tornava-se próximo, real. O ritual chegava ao seu ápice. 

As telas foram abandonadas em forma de semicírculo. Quando a praia foi largada pela força criadora daqueles mancebos e mancebas os velhos aproximaram-se. Traziam as mãos em prece, pingando gotas entre as rugas escorregadias. Puseram-se diante de cada tela, balbuciaram segredos milenares e deixaram regar as telas suas mãos benditas. A cada gota as paisagens floresciam, exalavam odores de tinta, que escorria pelos cavaletes. Permaneceram assim até que tudo ficou disforme, como um porto em meio à tempestade.

Ao voltar, encontraram a juventude ornada com flores nos cabelos. Os primeiros trovões ecoavam no horizonte. Entraram.

O salão era amplo, altíssimo. Coros santíssimos saudavam a procissão dos anciãos. No altar, jovens casais aguardavam. Suas roupas eram brilhantes, douradas. Um velho de longos cabelos caminhava entre os casais. Fecundava cada par de mãos com pequenas pérolas. 

Na praia, as telas voltavam ao branco original, deixando sob si as cores que haviam abandonado. Desciam até a orla como veias coloridas. A maré as engolia sedenta, em ondas já ousadas. O tempo fazia-se cumprir. Nuvens caudalosas cantavam no céu, a natureza abria pétalas de louvor. 

A cerimônia encerrava-se lentamente. Os casais voltavam às casas coroados com crianças em círculos fulgurantes como o sol. Amavam-se em olhares férteis, apaixonados. O vento zunia já calmo, recebendo-os com cortinas aplaudindo a entrada de cada novo par.

A noite chegou salpicada. Deitava perfumes nos lençóis virgens. As crianças guardavam alegrias em ninhos bordados de carinhos. Em longínqua estrela nascia outro sorriso. Dois braços estendiam-se em tapetes de anos-luz. A luz se...

Cássio desviou os olhos do velho livro. Ele já adormecera. Cobriu-o com uma manta. Fechou em silêncio a porta do quarto, deixando um beijo úmido na testa do pai.

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