A PENA DO PAVÃO
Ana Terra

Começo de noite ou final de um dia. Já nem sei mais definir começo e fim. Duas mulheres se olham. Um "por que" impiedoso e fascinante martela nossas cabeças. Tentamos falar, mas as frases terminam em reticências. Perguntas sem respostas. Apenas a certeza de que algo está morrendo e renascendo naquele momento. Algo que nos acompanhou durante o dia todo, disfarçado em burocracia. Olhares assustados, indagadores, medrosos, espantados. Pálpebras que se abrem e fecham de forma compulsiva. Vã procura de explicações. Lembranças aparecem, talvez como uma tentativa de racionalidade. Descobertas. As pálpebras se fecham. Queremos ou não tirar o véu? Nada sabemos. 

Não quero pensar mais. Minha sensibilidade explode. Preciso de lucidez e realidade. Corro e deito na pedra dura. Crua. Intacta. Que acolhe meu corpo com carinho. Encontro, por alguns instantes, o aconchego de que tanto preciso. Procuro refugio na imensidão do céu escuro. A Lua crescente, apesar da névoa, insiste em brilhar. Um halo luminoso começa a envolvê-la e vai crescendo aos poucos. Meus sentidos e poros se abrem com tanta intensidade que sinto medo. As pálpebras se recusam a proteger meus olhos. Tento gritar por socorro, mas minha voz desaparece. A pedra que me acolhe transmite liberdade e o halo de luz uma prisão. A sensação de que estou ilhada entre o céu e a pedra me sufoca e me fascina. Peço por realidade novamente. Saio dali. 

Encontro a mulher remexendo seus guardados, onde ela encontra uma pena de pavão. Como num ritual, a pena é colocada delicadamente nas minhas mãos. Tão bela quanto a mulher que me deu. Observo toda a magia da pena. Perfeita. Não tem pálpebras para esconder seu mistério. Agora estou entre dois olhares reais. Vejo os olhos negros da mulher e o olho colorido da pena. As indagações retornam. Acompanho cada haste delicada da pena e seus pêlos coloridos. Pêlos que brilham e se ondulam com a brisa, fazendo com que as cores tenham movimento aleatório. 

Sinto um cansaço imenso. Preciso sair dali. Deixo os olhos negros da mulher e carrego a pena comigo. Chego num abrigo e guardo-a num livro qualquer. Preciso dormir. 

Acordo e vejo que o sol ainda não nasceu. A névoa continua encobrindo o céu. Perco a noção do tempo até sentir os primeiros raios de sol aquecerem meu corpo. Olho para o lado e vejo hastes com pêlos coloridos saindo por entre as páginas do livro. Leio o título: Ilusões do Mundo, de Cecília Meireles. Fecho minhas pálpebras. Não posso a rever a pena neste instante. Corro o risco de tentar definir ilusão e realidade. 

Desejo um bom dia para mim e saio à procura de um café. 

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