GNOMOS E DUENDES
Heringer

Quase nunca vou àquela praça, quando muito passo através dela, que é um caminho alternativo pro apartamento onde moro com a minha única filha. Sempre atulhada de fedelhos, babás e velhos sem o que fazer, a pracinha tem movimento e barulho demais pro meu gosto exigente. No entanto, noutro dia, abri uma rara exceção. A manhã estava linda e um sol radiante se mostrava após uma semana de frio, nevoeiro e garoa incessante. Por isso me dispus a ir até lá. Pretendia ler o meu jornal em meio às árvores e ouvindo o canto agradável dos pássaros. 

Escolhido o banco, à sombra, sentei-me nele e comecei a leitura. Não demorou muito e ouvi uma voz débil que parecia direcionada a mim, e que perguntava algo muito, muito estranho! Baixei o jornal e percebi duas jovenzinhas, miúdas, sardentas, e tão parecidas entre si que as imaginei gêmeas. Fiz um olhar meio surpreso, meio casmurro, como que lhes indagando se era mesmo comigo que queriam falar - eu detesto que me interrompam as leituras -, e, ouvi dos pequeninos lábios de uma delas, de novo, a mesma pergunta:

- Com quantas pálpebras se faz uma canoa? 

A princípio, pensei ter escutado mal, mas não... fora isso mesmo. Não sou dado a conversas com crianças; na verdade prefiro-as bem longe. Não tenho netos e me sinto bem assim, mas esse papo de "pálpebras" me deixou curioso e levou-me a responder.

- Não é assim que se diz: não é com pálpebras, e sim com paus que se constroem canoas! 

Tão logo eu disso aquilo e começaram a gargalhar, as duas. Ora, pros diabos com essas criaturas, eu pensei, e me voltei pro jornal, que pousado sobre as minhas pernas aguardava impaciente que eu lhe continuasse a leitura. Então veio uma outra pergunta. 

- O que é que cai de pé e anda desdentado?

Eram maluquinhas, só podia! pensei com os meus botões, e, baixando cuidadosamente a folha, fiquei com um só olho mirando-as, deveras desconfiado. Olhavam-se entre si e riam risinhos grotescos e debochados. Pareciam duas duendezinhas da floresta. Resolvi sair dali e buscar outro refúgio, outra sombra onde pudesse ter um pouco de sossego. Achei um local, e de lá ainda podia ver as duas bruxinhas me olhando e, talvez, planejando novas traquinagens. Que rissem, as diabinhas, mas que ficassem bem distante. Mas então aconteceu uma coisa nova e desagradável. Um bem-te-vi mais afoito e péssimo de pontaria - ou seria o contrário? - acertou-me em cheio, ou melhor, ao jornal que eu segurava, mas mesmo assim senti-me bastante ultrajado, como se ele houvesse atingido a minha própria cabeça. Gosto dos pássaros e os observo sempre que posso. Já conheço o canto de alguns, e os costumes e manias de muitos outros, dado que os acompanho há muito. Tentei contemporizar o fato, afinal, era eu que não devia me meter debaixo dos seus domínios e dejetos. E enquanto eu pensava nessas coisas, quase que fui atropelado por uma mocinha, provavelmente uma das muitas babás que se ajuntam rotineiramente naquela praça, e que passou correndo, dirigindo ruidosa e perigosamente um carrinho de bebês, a gritar que tinha pressa, e muita pressa! Comecei a me sentir inconveniente ali, como se num mundo novo, louco e mágico, feito uma Alice perdida num país de estranhas fantasias. Decidi-me por oportuna e urgente retirada, antes que tudo desandasse e coisas piores e ainda mais absurdas me ocorressem. 

Pensei na minha sala confortável e acolhedora, bem perto dali, onde uma cadeira macia e de suave balanço me aguardava, fiel e ansiosa. Nela, como se um trono, eu lia com raro prazer e dormia com a segurança dos poderosos imperadores. Lá, em minha sala, nunca fui alvo de pássaros insolentes nem guris impertinentes. Então, adeus pracinha, e que fiques com os teus monstrinhos, que estou de partida. À saída, já pertinho da calçada, percebo mexerem-se uns arbustos numa ramagem muito florida de azaléa. Na certa um pássaro ali cuida de um ninho, ou um gato os caça, sagaz e pacientemente... mas, qual nada! Sai de dentro dessa moita só a cabeça disforme de um homenzinho estranho, feito um anão circense, de chapéu verde, fora de moda, que mal esconde as grotescas orelhas pontudas. O alienígena, pra meu desassossego e espanto, vem logo me perguntando:

- O que é, o que é, que enche uma casa, mas não enche um mamão? 

Minha filha me vê entrando esbaforido, pálido, respirando com dificuldade e corre a buscar estas pílulas incríveis que nos permitem viver mais que deveríamos. Estou ofegante, e ela pergunta, após me fazer engolir um comprimido, o que teria acontecido? Já ia contar a verdade, mas num raro momento de lucidez - imaginem o mico que eu ia pagar com esta história maluca e abestalhada - eu desconversei. Disse que o elevador dera uma sacudidela muito brusca e que eu teria me apavorado com o incidente. Ela protestou e garantiu-me que ligava em seguida pro síndico... e que tal coisa não podia jamais acontecer... de forma alguma... que ouvira de alguém que um elevador havia caído, há algum tempo, não longe dali... e que este nosso precisava de manutenção constante; e então me sugeriu que eu descansasse um pouco e que assim que lhe fosse possível, iria comigo à pracinha em frente, onde então eu poderia distrair-me e sentir-se melhor... Fiquei condoído com o susto que lhe causei com o meu súbito ataque de tosses e conseqüente desmaio.

Agora durmo profundamente em minha cadeira favorita, e sob o efeito de alguns sedativos e calmantes eu sonho, talvez até delire; e julgo ouvir sons e ver coisas estranhas no teto e nas paredes: terríveis gnomos e duendes!

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