DIA A DIA
Krika

Chegar correndo, passar o cartão e colocar no pescoço, tipo coleira sabe? Chegar na sala, ligar o computador e a impressora, abrir o armário e colocar todas as pastas na mesa, entrar na sala do chefe e ligar o computador dele, arrumar os porta-retratos dos filhos, esposa e netos, ajeitar os papéis e tirar os documentos da caixa de entrada/saída, ir para a sala do outro chefe e fazer as mesmas coisas, pegar a bolsa e ir ao banheiro, passar maquiagem, fazer xixi, tomar um café e voltar para a sala. Ufa! Oito horas em ponto e o telefone já dá o primeiro toque.

Levantar da cadeira pegar os envelopes e começar a separar os documentos antes que o boy interno passe para retirar. Sentar em frente ao computador e ler os e-mails, imprimir os importantes, responder os urgentes e deletar as correntes. Toca o telefone, é o porteiro informando que um dos chefes está subindo: fechar a internet.

Falar "bom dia", esperar ele se ajeitar na cadeira e abrir o jornal, informar sobre a reunião das 8h30 sobre a compensação de horas dos feriados de fim de ano. Toca o telefone, é o porteiro informando que o outro chefe está subindo: fechar a internet outra vez.

Falar bom dia, dar beijinho e esperar o primeiro grito chamando meu nome, entrar na sala para despachar os documentos, toca o telefone dele. Ouço duas batidas na porta, que está sempre aberta, e o Gerente de Marketing já está entrando para resolver os detalhes da nova estratégia de vendas, mas o Diretor sai correndo: foi chamado para participar de uma reunião de mão única (ele ouve e o superior determina) com o Presidente. 

Voltar para a sala com a pilha de documentos e o Gerente de Marketing atrás querendo puxar papo para descobrir como está o humor do chefe. Responder de forma monossilábica.

Toca o telefone e é a secretária do presidente da Associação querendo falar com o chefe (que está na reunião sobre a compensação de horas). Engato papo com ela, o Gerente de Marketing sai para fumar. Durante o papo, a segunda linha começa a piscar. Puxo a ligação: é o Diretor (que está na reunião com o Presidente) perguntando onde eu estava. Conto até dez e digo que estava atendendo a uma ligação de alguém que queria falar com o outro chefe. Ele pede um documento, saio correndo pelo corredor para entregar e esqueço de desviar o telefone para a telefonista. Quando chego, o aparelho está tocando. É a copeira querendo saber se quero um chá. De erva-cidreira, por favor, porque hoje o dia promete.

Respiro fundo, 10h20 e a pilha de documentos só aumenta na minha mesa. Quando estou conseguindo pôr ordem, chega o imprevisível Gerente de Marketing com lay-outs finalizados enormes da nova estratégia de vendas, querendo colocar em cima da minha mesa. Não, aqui não cabe, coloca lá em cima daquele armário baixo.

Passa o Gerente da Contabilidade, que subiu do subsolo até a Diretoria só para verificar como andam as coisas aqui em cima: fecho a internet. Conversamos um pouco, ele reclama das novas decisões arbitrárias e ouço com uma paciência de Jó. Toca o telefone (ainda bem!) e o Gerente da Contabilidade vai para o Departamento de Informática xeretar. A ligação é de uma colega me chamando para almoçar. Mas já?

Atender o telefone, despachar papéis, passar fax, agendar reuniões, reservar salas, atender o rádio, arrumar a sala, colocar papéis, emprestar a impressora, pedir coffe, desmarcar reuniões, inventar reuniões. Levar lápis e borracha para a reunião, mudar de sala na última hora, levar os lápis, as borrachas e os papéis para a outra sala, levar apagador e pincéis para o flip chart. Reservar data show, procurar o rapaz para instalar o data show, procurar pano e álcool para limpar a lousa branca que foi escrita com pincel de flip chart e o apagador NÃO apaga de jeito nenhum. Terminada a reunião, recolher os pincéis, as borrachas, o apagador, pedir para o rapaz devolver a minha impressora e o data show e, para finalizar, um lápis mais pontiagudo crava no meu dedo, chegando a ficar pendurado. Como dói! 

Tudo isso numa manhã. À tarde, despachar, marcar, agendar, faxear, recolher, sorrir, falar firmemente, falar docemente, ouvir, ouvir e ouvir cada vez mais.

Queria ter tempo para me olhar no espelho e ver que não envelheci mais que o combinado durante esse ano. Queria poder olhar para o céu e acompanhar o pôr-do-sol todos os dias e, quem sabe, recuperar aqueles que perdi durante o ano. Queria poder cumprir toda lista de "coisas para fazer" que havia proposto e da qual não completei nem dois itens, queria poder presentear as pessoas queridas com regalos feitos por mim de mosaicos. Mas como, se não tenho tempo nem de olhar a minha caixinha?

Queria ter certeza que no ano de 2003 as coisas serão bem diferentes e, quem sabe, poder sentir a minha alma lavada e menos culpada por perder os melhores anos da minha vida trabalhando.

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