ALMA LAVADA
Celso Costa Ferreira

O telefone tocou e era Estela. Estela!, por quem Geraldo curtia uma avassaladora paixão platônica há quase dez anos. Perto dela, ele jamais conseguira dizer nada além de contidas ridicularidades, impedido pela invencível timidez que sua presença levava ao extremo. Todo homem sabe: acompanhados de mulher em quem não estamos interessados, somos as caras mais espirituosos do mundo. Ao lado de nossas musas, nos tornamos múmias paralíticas. Quanto maior o interesse, maiores imbecis seremos. No caso de de um tímido então, como o Geraldo, a coisa é patológica. Dez anos de garganta seca, só falando, "humrum,humrum".

Mas o telefone tocou e era ela:

- Oi, Geraldo, tudo bem? O que você vai fazer hoje? - O que se seguiu, Geraldo nunca pôde explicar:

- Oi, Estela! Olhe, eu tenho duas opções: ou ficarei sozinho em casa, assistindo TV, fechando o dia com um belo banho no cachorro, ou então, amor de minha vida!, vou até aí entregar-me inteiro a você, ser seu capacho, para que me pise com estes seus pezinhos deliciosos, me ame loucamente, me esgote de amor, me leve ao delírio, me tire dessa prisão em que a ausência de seus braços, seus beijos e de seu sexo úmido e quente, irremediavelmente me lavará a uma morte lenta e dolorosa, querida!

- Geraldinho!!!

- E tem mais! É pegar ou largar, que já não suporto mais!

- Geraldinho, precisamos conversar... Você bebeu?

- Nem uma gota, mas estou embriagado de amor!, ébrio de paixão!, trespassado de absurdo sofrimento mudo que só a sua presença poderá curar... Estela! Estela!, quero gritar seu nome, até que os deuses do amor a convençam de minha dor, Estela!

- Dinho, não sei o que dizer... Nós somos tão amiguinhos!

- Amiguinhos? Amiguinhos o ca... Desculpe! Você vive se enroscando em mim, entorpecendo-me com seu perfume, revelando deliciosas coxas e decotes plenos de promessas rosadas! Eu não sou de ferro, Estela!

- Mas eu nunca pensei...

- Nunca pensou o ca... Desculpe, amor! Não se faça de inocente, vocês mulheres são todas iguais.

- Mas, Dinho...

- E não me chame de Dinho! Meu nome é Geraldo, aliás, Geraldão! Dinho, só depois, na cama.

- Pôxa, Dinho, quero dizer Geraldão, você também nunca falou nada, parecia até que tinha alguma coisa presa na garganta, né? Ou então, asma, sei lá!

- Humrum... Não! Tinha você entalada no peito, a cada segundo sugando todo o ar de meus pulmões... Sua seqüestradora de oxigênio!

- Ai, você está tão diferente hoje...

- Pois é: este é meu verdadeiro eu! EU!... E se me quiser é na base do amor. Amizade só com o Rex, aquele em quem eu dava banhos.

- Geraldo, você me dá um tempo? Preciso pensar. Você sabe que estou com o Naldinho.

- Nadinha, você quer dizer! Aquele bolha que parte os cabelos certinho, e fica um risco na cabeça de fora a fora, parecendo trieiro de formigas cabeçudas... Além de ficar andando pra lá e pra cá, de Ferrari!

- Nossa, Geraldo, como você mudou, não estou te reconhecendo...

- Mudei. Forever! E como é que vai ser? Na sua casa ou na minha?

- Me dá até amanhã, pode ser?

- Eu deixo, pode. Tiau!

Tá certo que no outro dia Geraldinho fugiu para o Pólo Norte e nunca mais foi visto. Dizem que está feliz, casado com uma esquimó, que cheira a peixe e usa roupas fechadas até o gogó.

Mas deixou o exemplo. Em sua homenagem, fundaram o fã-clube Alma Lavada, com o lema: "Gente, é possível!". Apenas um quarto com o retrato do Geraldão na parede. Mas é lá que legiões de tímidos e espezinhados arregimentam forças para as inglórias batalhas que têm de enfrentar no dia-a-dia junto a elas. Valeu, Geraldão!

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