TEMPO, MÁQUINA DE LAVAR ALMAS
Lauro Lima

A mãe morreu cedo, ele nem chegara aos sete anos. Das lembranças que dela guardava a mais nítida era a atitude serena, a delicadeza dos gestos, a firmeza da voz. O pai, empurrado pela necessidade, deixou-o no sertão, junto com os dois irmãos menores, sob cuidados de uma tia, indo trabalhar na capital. Sempre que podia voltava para vê-los, mas isso só ocorria de ano em ano.

Cresceu assim, meio solto, meio moleque, preferindo as frutas furtadas dos quintais vizinhos à comida parca da casa da tia. Era o próprio negrinho esperto, admirado e repreendido por todos, na mesma medida. Habilidoso com o canivete, suave e carinhoso com os animais, disposto e disponível com os amigos.

Aos dezesseis um telegrama chegou. Lento, como costumava acontecer naquelas paragens, três dias de atraso. Trazia uma notícia que poderia demorar bem mais para chegar ou, quem sabe, nunca chegar. O pai tinha morrido de repente. Coração, deve ter sido, disse-lhe o padre tentando explicar-lhe o significado da palavra "síncope" no meio do texto de duas linhas, sem artigos ou preposições.

Chorou silencioso aquela noite. Levantou-se cedo, no primeiro canto do galo, ciente que o moleque ficaria para trás, era, então, o homem da família. Tinha a responsabilidade de cuidar do próprio futuro e do de seus irmãos. Vestiu a roupa de missa e foi procurar emprego na fábrica de tecidos.

Manoel, o chefe da fundição, quase não conseguiu reconhecê-lo naquelas roupas, mas não teve como não ver o brilho da decisão em seu olhar. Conseguiu-lhe um emprego de aprendiz. Sabia que estava presenciando o sutil momento em que um menino vira homem.

Ele não o decepcionou. Em pouco tempo tornou-se o melhor auxiliar de torneiro que a fábrica já tivera, a ponto de o mestre Ribamar, o oficial torneiro, começar a imaginar seus dias de aposentadoria, pois, já tinha substituto à altura. Entretanto os planos do jovem eram outros. Não poderia, naquele sertão distante, almejar ser mais que aquilo. E como ficariam os irmãos mais novos? 

Decidiu seguir os passos do pai. Iria para a capital servir exército, como era obrigatório. Assim que terminasse o tempo arranjaria algum emprego, que rendesse o suficiente para alugar uma casinha e buscar os irmãos. Assim fez.

Meteram-lhe uma farda e, junto com outros ignorantes matutos, foi transportado para o Rio de Janeiro, de navio, onde chegou no ano de 1933. 

A vida militar completou o trabalho de forjar, nele, o homem correto, digno, de palavra, admirado e respeitado. Entretanto a cor de sua pele era motivo de sempre ser preterido, entre sussurros, para os avanços e vantagens que a carreira militar poderia lhe propiciar.

O tempo de serviço militar aproximava-se do final, menos de dois meses para conseguir outra atividade e, quem sabe, trazer os irmãos. Buscou empregos possíveis, aproveitou folgas acumuladas andando, de fábrica em fábrica, à procura de uma vaga na única atividade em que era habilitado, o torno. Não conseguiu. Também não desistiu. As oportunidades estavam na cidade grande, e não lá no interior do nordeste.

Um amigo segredou-lhe que poderia continuar no exército mais algum tempo. Se conseguisse aprovação no concurso interno para tornar-se "cabo". Seu limite de tempo de permanência passaria para nove anos. O único problema eram as provas. Para ele não foram. Dedicou-se, durante um mês, em todos os horários disponíveis, a estudar as matérias. Pediu ajuda a uma vizinha, professora, para explicar-lhe as coisas que não conseguia entender. Fez a prova e foi aprovado, se bem que, se dependesse do capitão sub-comandante, seu nome não constaria da lista final. Achava que sua unidade não deveria ter soldados ou sargentos negros, pois, destoariam do conjunto. Foi mantido como um dos aprovados pela exigência de cumprimento das regras, cobrada pelo comandante.

Já ostentando as divisas de "Cabo do Exército", aproveitou as férias para ir ao interior buscar os irmãos. Instalou-os numa casinha de subúrbio nas proximidades do quartel. Endividou-se comprando móveis. Conseguiu emprego para o mais novo, como aprendiz de oficina. A irmã cuidava da casa.

Não demorou a perceber que, no exército, apesar de ocasionais discriminações aqui e ali, em vista de sua cor, a principal diferença acontecia entre os chamados graduados - de soldado a sub-tenente -, e oficiais, - os que faziam escola militar - e que, por isso mesmo, iniciavam suas carreiras como tenentes podendo chegar a generais. Não era objetivo que pudesse almejar. Implicava em muito estudo, em já possuir formação escolar de ensino médio - e ele parou de estudar no final do primário - e em dispor de suporte financeiro para passar anos sem outra preocupação a não ser estudar. De mais a mais nunca vira um oficial negro. Definitivamente era algo muito além de suas possibilidades. 

O tempo passou. Conseguiu encaminhar o irmão. A irmã casou-se com um rapaz direito. Também decidiu que era o momento de constituir sua própria família. Foi ao interior propor casamento a uma mocinha que conhecera numa de suas idas. Ela aceitou. 

Construiu sua própria casa, num bairro afastado, e teve muitos filhos. Cuidou da formação escolar de cada um deles lutando com extrema dificuldade. Todavia nenhum pretendeu seguir a carreira das armas, preferindo profissões liberais. Aos poucos passou a sargento e, finalmente, sub-tenente. Os filhos lhe deram netos e, alguns desses, bisnetos. Deixou o exército quando completou o limite de tempo para o serviço ativo. Beneficiado pelas leis da época da guerra e sua carreira sem mácula, passou para a reserva no posto de Major, acumulando promoções.

Permaneceu casado cinqüenta e três anos, até que a esposa faleceu. Começou, ele também, a definhar, apesar de manter a alegria e o bom humor.

Estava com oitenta e sete anos quando um dos filhos levou-o, mesmo em cadeira de rodas, à Academia Militar das Agulhas Negras, para assistir à solenidade de declaração de novos aspirantes a oficiais. Entre os mais de duzentos jovens um lhe era especial, seu neto, o mesmo que carregava seu nome.

Voltou para casa feliz. Setenta anos depois seu nome, através do neto, estava inscrito no caminho dos que poderiam chegar aos mais altos postos do exército, o mesmo exército que apoiara a construção de sua vida. Podia morrer, a partir de então, a qualquer momento, bastava Deus assim determinar, estava de alma lavada. 

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