RELEMBRANÇA
Míriam Salles

Hoje passei o dia telefonando para um monte de nomes conhecidos e outros reconhecidos, pessoas que graças a um amigo organizado pude encontrar. Foi uma delícia ouvir tanta gente que há tanto tempo não ouvia, amigos da primeira infância, do dia-a-dia escolar. Engraçado é que tive uma sensação de proximidade ao falar com cada uma das pessoas. Foi gostoso, como se nos falássemos sempre, como se houvesse uma grande intimidade.

Fui deixando os mais gostosos para o fim, como a gente faz com o pedaço mais lambuzado de calda de chocolate do sorvete.

Um dos telefonemas que fiz provocou-me ataques de riso. Havia na classe um menino quieto, sisudo, daqueles que nunca fazia graça com ninguém. Um dia, voltando da aula de educação física, entrei na sala avoada. É bom que se diga que eu vivia no mundo das nuvens naquele tempo. Dizem que hoje ainda vivo, mas as nuvens agora não são mais tão macias, nem tão cor-de-rosa.

Mas voltando ao assunto, vinha eu tão distraída que entrei na sala ao invés de entrar no banheiro. Sentei-me no meu lugar e comecei a tirar a camiseta de malha branca usada na educação física. Tinha eu então 11 anos, seios que, começando a despontar, ainda dispensavam o uso de soutien. Somente ao sentir a dificuldade em tirar a cabeça da gola apertada é que me dei conta de onde eu estava. Vesti-me rapidamente olhando para os lados para ver quem havia me flagrado. A única pessoa que me viu foi aquele menino, o sisudo e sem graça. Ele me olhou com um ar de safadeza e, apontando o dedo, falou: - Eu vi-i, eu vi-i!

Tive sorte desta vez, ele não faria nada mais que isso e nem mesmo acossado pelos outros meninos contou o que havia visto. O que para ele era um trunfo, para mim era a salvação.

Outro dia li meu horóscopo. Dizia que pessoas do meu passado estavam reaparecendo e que eu me perguntaria porque deveria sofrer tudo novamente. A primeira parte está certa (ou será que eu a fiz acontecer?), mas a segunda... Não. Refazer esse caminho do passado usando as pernas que tenho hoje, é como lavar a alma em água cálida. Vão-se as lembranças voláteis e clareiam-se as lembranças perenes. Fica disto tudo o pouco que aquece e que faz bem.

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