JANAÍNA
Nato Borges

- Você sabe porque eu te chamei aqui, não sabe?

- É, acho que sei...

Sabia. Era o usual. Sempre que as coisas se complicavam, que a relação desandava, que o troglodita a tratava mal, que algo não ia bem, o telefone tocava e a voz chorosa o fazia desabalar-se de onde estivesse, fosse onde fosse, na companhia de quem fosse.

- Eu sempre contei com você, e só com você...

- É...

Era. Desde os tempos de colégio. Antes disso até. Não se lembrava de um momento em sua vida em que não tivesse adoração por ela. Por sua voz, seu sorriso, seu corpo. Na adolescência era esplendorosa e, pior que tudo, amiga. Não se lembrava em que momento ficaram amigos, mas ficaram. 

Talvez fosse a única forma de ficar por perto, poder abraçá-la de vez em quando, Ter contato com aquele corpo, mesmo que tudo ficasse na imaginação depois. Chegava ao cúmulo de não namorar ninguém por muito tempo. Medo de se apaixonar e esquecê-la. Não queria. Nunca quis ninguém além dela.

- Eu não agüento mais, estou cansada. Ele não me respeita, não tem o menor carinho por mim...

- É...

Era. De fato, nunca entendera os homens que ela escolhia. Devia ser alguma coisa física, tara ou algo que o valha. Todos, sem exceção, grosseiros. No começo ficava amigo deles também, mas desistiu quando um deles se achou amigo de fato. Saíam para beber e o outro lhe contava em detalhes como a enganava, como fazia com ela, como fazia com as outras.

Tinha raiva, tinha inveja. Tinha vontade de contar tudo. Mas ela não acreditaria. Outra característica sua era apaixonar-se perdidamente. Se entregava como uma louca e, meu Deus, como aquilo devia ser bom. Depois era o caminho: uma falha, um esquecimento do outro e ela descobria tudo. E o telefone tocava.

- Estive pensando esses dias. Sempre que eu precisei você estava por perto...

- É...

Era. Em todas as ocasiões, sempre que ela precisou, sempre que ela quis. Mas desta vez havia algo estranho. Nunca ela havia sequer agradecido. Para ele era como se houvesse um acordo tácito entre os dois. Era uma obrigação. Não havia agradecimentos, nunca houve. Mas esse reconhecimento estava fora do roteiro já tantas vezes repetido.

- Nunca me trataram como você, e só agora me dei conta disso. Você sempre tem tempo para mim...

- É...

Era. E era mais estranha ainda aquela conversa. Começou a achar que havia ali alguma possibilidade. Aquela, esperada por tantos anos. Será? Seria? Aventar a hipótese lhe transtornou. Começou a suar. Certamente estava ruborizado, vermelho mesmo, talvez roxo. Quantas vezes na vida tinha sonhado com aquela conversa?

- Essa atenção toda não pode ser involuntária. Foi muita insensibilidade minha não perceber isso antes...

- É...

Era. Tinha dado a ela todos os sinais, todas as indiretas possíveis e imaginárias. Mas ela sempre esteve concentrada em seu mundo, nas suas conquistas grotescas. Sim, porque eram grotescos aqueles que ela chamava de namorados e, principalmente, aquele que ela chamou de marido por um tempo. Mas a persistência merecia um prêmio. Agora tinha certeza, era sua vez.

- Nunca fiz isso antes, mês expor desse jeito, mas você me conhece melhor que ninguém...

- É...

Era. Conhecia e não se reconhecia naquele momento. Estava radiante, feliz como nunca tinha se visto. Tantos anos, tanto cuidado, tantas vezes ali ao lado dela, tantas noites passadas em branco, reconfortando, conciliando, ajudando, carinhando, suportando, aconselhando, acompanhando, sonhando. Não acreditava no que acontecia. Era hora de dizer alguma coisa.

- Você não faz idéia de quanto eu esperei por isso...

- Jura?

- Juro. Foram anos, muitos anos...

- Olha, eu acho que eu devia me desculpar antes da gente começar qualquer coisa...

- Não, não... espera... não fala mais nada...

Respirou fundo. Não queria desculpas, nada. Queria falar. Tanta coisa presa, tantos sentimentos represados e aquela alegria sem fim. Não se agüentava, mas ia se controlar. Falaria com calma e em poucas palavras. Não queria perder mais tempo.

- Janaína, vá se foder! No que depender de mim, você vai morrer sozinha!

Levantou-se e foi embora, com uma leveza nunca antes sentida em seus ombros.

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