SURPRESA DE NATAL
Alice

Noite de natal de 1986, Fortaleza, capital do Ceará.

Clara recusava-se a ver a hora, não queria que aquele momento chegasse. Andava por entre os berços das crianças, no pequeno orfanato Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, onde morara desde os 6 anos de idade. Tantos rostinhos, todos tão amados. O soluço preso na garganta, as pernas pesavam, uma dor aguda lhe maltratava o peito.

— Clara minha filha, não sofra tanto, você pode visitá-los quando quiser, pode trabalhar conosco quando se estabilizar.

— Irmã Tereza, foram 12 anos da minha vida junto a eles... como posso deixá-los, são como irmãos, filhos, meus pequeninos...

— Arrume sua vida lá fora, você fez 18 anos, vai trabalhar e estudar, pode vê-los quando quiser, sempre estarão aqui.

— Eu sei, infelizmente ainda muitos estarão aqui e muitos ainda virão não é?

— Vá minha filha, D. Catarina espera por você, não esqueça de agradecê-la por esta chance.

— Eu sei irmã, fico com ela até arrumar um trabalho e lugar para morar.

— Pois é, não é sempre que uma voluntária se presta a tamanho favor. Acolher um órfão na sua idade.

Clara pegou sua pequena mala, abraçou a Freira que a criou, quando foi deixada lá, junto com seu irmão mais velho, pela mãe doente.

Do outro lado da rua silenciosa e arborizada, Clara deixou -se ficar, para voltar ao passado, rever na memória, o que a levara para um orfanato.

O pai havia morrido, logo depois que ela nasceu, e sua mãe lutara para que nada lhes faltasse. Tinha enfrentado o preconceito por ser negra e se fixara no emprego de faxineira de um prédio comercial. Educada e trabalhadora, conquistou também o respeito de todos, mesmo sendo bem jovem.

Clara guardava dela as mais doces lembranças, o carinho, o colo, seu cheiro, os doces beijos que ela lhe dava quando voltava do trabalho. Que tristeza foi vê-la num caixão; fria, olhos fechados, sem vida.

Um dia antes de sua morte, ela os levara para o orfanato onde era voluntária. Acometida de uma febre alta, precisava ser internada, como prevendo a morte, entregou-os para a freira que era sua amiga, para que ficassem amparados. No dia seguinte veio a falecer, por estar fraca, não resistiu a uma forte pneumonia.

O irmão, João Fernando, foi adotado um ano depois por um casal. Gostaram dele desde o primeiro dia em estiveram no orfanato. Ele já estava com 10 anos, mas era cativante, com seu sorriso de dentes brancos e perfeitos. As crianças sentiram imensa falta de João, pois era ele quem contava as estórias na hora de dormir, cantava cantigas de ninar, e rezava o pai nosso em voz alta para que todos aprendessem.

Ele não queria ir, não queria deixar o orfanato, mas aceitou, daria seu lugar para outra criança, porém prometeu voltar para buscar a irmã, que esperou muitos anos até compreender que não seria fácil como pensaram. Ele se foi e nunca mais deu notícias. As freiras perderam contato com a família logo em seguida, talvez não quisessem ser localizados.

Clara secou as lágrimas e seguiu rumo ao ponto de ônibus. Meia hora depois descia no ponto final, já sabia onde era a casa, mas suas pernas não queriam sair do lugar, teria que andar mais um pouco. Já passava das 10 da noite, de repente ela sentiu um medo terrível, a rua estava escura, apenas nas janelas das casas tinha luz, soavam músicas de natal aqui e ali, risos abafados, conversas cortadas.

Dobrou a esquina, no final da rua era a casa de D. Catarina, podia ver a fachada iluminada, as luzes piscavam colorindo a parede, sentiu vontade de dar meia volta e sair correndo, mas não podia voltar para o orfanato, não podia mais morar lá, respirou fundo, pediu a ajuda da mãe, seguiu em frente, avistou pessoas, ouviu risos.

Estavam festejando o natal na casa, com certeza eram os familiares da dona. Como era esperada, logo foi vista, a senhora veio ao seu encontro.

— Você demorou! Pensei que havia se perdido, tomado o ônibus errado, disse a mulher.

— Não, é que me demorei na despedida, a senhora sabe... foi muito duro... e começou a chorar.

— Acalme-se, venha. Foram até a cozinha. 

— Tome um golinho de vinho, é doce, vai te fazer bem. Veja, você está tremendo.

Ela bebeu o vinho e mais calma, tentando formar um sorriso disse:

— Estou bem, vamos pra sala, quero conhecer o pessoal.

D. Catarina apresentou Clara aos seus amigos e parentes e no final disse:

— Tenho uma surpresa pra você, sente-se.

De repente ela viu surgir por detrás das outras pessoas, um sorriso de dentes brancos e perfeitos.

— João Fernando... falou baixinho escondendo o rosto entre as mãos.

Ele veio devagar, pegou-a pelas mãos, levantou-a , abraçou lentamente, deixaram a emoção falar. Depois de alguns minutos ele disse:

— Sabe, se eu te encontrasse em algum lugar, não te reconheceria, Clarinha, como você está linda, era capaz de me apaixonar...

Todos riram se descontraindo, ela riu e se abraçaram mais uma vez e choraram. Dona Catarina interveio.

— Vamos jantar minha gente, porque à meia noite eu quero assistir a missa do galo, mas de barriga cheia. E deram início a ceia.

Naquela noite, quando todos se recolheram, sozinhos na sala, eles se deixaram ficar, até amanhecer.

Ele era advogado, era rico, e estava feliz e agradecido por tê-la encontrado. Seus pais adotivos tinham falecido num acidente há pouco tempo, ainda com vida no hospital, a mãe revelou onde encontrar a irmã. Ele procurou e sem demora encontrou-a, mas combinaram fazer surpresa, visto que ela ia sair em breve e assim foi.

— Muitas vezes fui ao orfanato te ver dormir, quando você saia eu ia contar histórias para as crianças. Esse encontro foi mais que esperado, minha querida.

— Então você é o misterioso tio João? Que nunca consegui encontrar por lá? Só ouvia falar? Como pôde fazer isso comigo? — riram abraçados.

Muitos natais ainda viriam e muito ainda tinham para fazer.

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