NÚMEROS NO BRAÇO
Carlos C. Alberts

Toda Sexta-feira, meu pai ia a uma sauna no Bom Retiro, quando ainda era o bairro dos judeus. Era um dos poucos prazeres a que ele se permitia. Lá encontrava com meu tio e com um velho amigo, colega de profissão.

Quando podia, adorava acompanhar meu pai e os outros dois. Na sauna, sempre o mesmo ritual. Sauna seca no quarto degrau (50 graus Celsius), cerca de 15 minutos; ducha fria; descanso nos bancos de alvenaria cobertos de azulejos brancos; mais quinze minutos de sauna seca, agora no quinto degrau (60 graus) com vassourinha (ramalhete de folhas de eucalipto misturando água fervente e sabonete em um pequeno balde de lata, para liberar os óleos aromáticos da planta, seguido de um leve açoite nas costas para a abertura dos poros e a penetração das essências); nova ducha fria; novo descanso, jogando conversa fora; massagem; banho completo; uma meia cerveja (Brahma Extra); colocar a roupa e ir jantar. Geralmente no Piroschka da Alameda Santos ou no Restaurante Brahma, na esquina da Ipiranga com a São João.

Sempre que os acompanhava tinha meu próprio ritual (preferia o banho turco, a sauna de vapor, por exemplo), mas fazia questão que coincidissem os descansos para ouvir a conversa entre o meu pai e os outros e falar das minhas coisas.

Numa Sexta-feira, devia ter 15 ou 16 anos, combinei com meu pai e o encontrei na Sauna. Meu tio e o amigo não viriam hoje. Estávamos descansando entre os passos dos respectivos rituais e meu pai falou em alemão.

— Venha, quero que você conheça uma pessoa.

Meu pai raramente falava em alemão comigo. Geralmente só em festas da família ou diante de um visitante vindo da Alemanha. Segui meu pai e ele se dirigiu a um senhor pouco mais jovem que ele. O homem estava sentado sozinho num banco de alvenaria, com um ar distante. Ainda falando em alemão, meu pai disse.

— Este é o Sr. Silberstein. Este é o meu filho.

— Como vai?. 

Disse o homem em um alemão idêntico ao do meu pai.

— Bem, obrigado.

O homem levantou-se e apertou a minha mão. Os três éramos circuncidados. Eu e meu pai por motivo de acomodação anatômica. O Sr. Silberstein por causa da fé religiosa de seus pais. 

— Por favor, mostre a ele.

Disse meu pai. E o homem estendeu o braço, com a palma virada para cima. Na parte sem pêlos do antebraço via-se claramente uma tatuagem. Vários números.

— O Sr. Silberstein esteve em Auschwitz. 

Disse meu pai. E pediu para que o homem contasse o episódio em que tinha sido preso.

— Eles chegaram à tarde, um pouco antes do jantar. Eram três integrantes da SS. Um tenente e dois soldados. Entraram pelo portão e falaram para meu pai chamar todo mundo que estava em casa para o quintal. Vieram a minha irmã de seis anos, meu irmão mais velho, de dezesseis, minha mãe e eu, que tinha dez anos. O Tenente falou que tínhamos cinco minutos para pegar pertences pessoais (nada de valor) e seriamos conduzidos a um posto de triagem. Minha mãe pediu para, antes, servir o jantar, que já estava pronto. Sem hesitar, o tenente sacou a pistola e deu um tiro no peito de minha mãe. Ela caiu como uma folha no outono. Meu pai o chamou de porco e partiu para cima dele. Levou um tiro no pescoço e caiu também. Meu irmão tentou pegar a arma de um dos soldados. Não foi rápido o suficiente e levou uma coronhada na testa. Ficou estendido no chão. Eu gritei e minha irmã tentou correr. Um soldado a pegou pela cintura. O outro me empurrou em direção ao portão e à rua onde havia um caminhão cheio de gente na caçamba. Me mandaram subir e colocaram minha irmã perto de mim. Voltaram para dentro de nosso quintal e arrastaram meu irmão mais velho. Puseram-no também no caminhão, ainda desacordado. No dia seguinte estava num trem indo para Auschwitz, junto com uma porção de pessoas que tinham uma estrela de Davi amarela na lapela, como eu, ou um triângulo rosa ou, ainda, um estrela de cinco pontas vermelha. Mais tarde descobri que as estrelas amarelas identificavam judeus, as vermelhas identificavam comunistas e os triângulos, os homossexuais. Fiquei por dois anos, um mês e nove dias. Nunca mais vi meus irmãos.

— Muito obrigado e até mais, Sr. Silberstein.

Disse meu pai e foi tomar a vassourinha. Eu fiquei sentado num banco de onde podia ver o Sr. Silberstein. Ele parecia com meu pai. Também tinha olhos azuis. O mesmo cabelo liso, louro e grisalho. Tinha uma barriga grande como a de meu pai. A pele era da mesma cor. E também era circuncidado. Mas aquele ar distante era totalmente diferente do meu pai. Meu pai sempre olhou para o futuro com determinação.

Naquela vez não fomos jantar fora. Fomos direto para casa. Enquanto minha mãe assistia TV no quarto, eu e meu pai nos sentamos na sala. Ele se serviu de um conhaque, sentou-se e esperou. Quando eu finalmente falei, estava com raiva.

— Que história foi aquela? Que é que nós temos a ver com os nazistas e os judeus? Você não estava lá. Você chegou em 1925 ao Brasil. Você nem é mais alemão. Ou se esqueceu que se naturalizou brasileiro? E eu? Eu nasci aqui e a mamãe é brasileira. Por que eu tenho que ouvir este tipo de baboseira?

Meu pai bebeu um gole de conhaque e disse.

— Filho, perseguições sempre ocorreram e sempre vão ocorrer, especialmente aos judeus. Não entendo o por quê, mas não duvido que daqui alguns séculos ou mesmo algumas décadas eles voltem a ser perseguidos. Isto aconteceu várias vezes na história deles. Talvez seja inevitável.

— Então? Que é que nós podemos fazer? Não temos nada a ver com aqueles nazistas malucos. Somos brasileiros e algo assim nunca vai acontecer aqui. 

— Você tem razão, em parte. Isto dificilmente ocorreria no Brasil. Mas você está enganado. Nós não somos brasileiros. Eu sou brasileiro. Eu escolhi esta nova pátria. Eu me naturalizei. Mas você não. Você é alemão. Pelas leis e tradições alemãs, um alemão não é o sujeito que nasce na Alemanha. É aquele que tem sangue alemão. Eu me naturalizei, mas seus avós não o fizeram. Queira ou não, você é alemão. Além disso, você foi criado em parte como um alemão, fala alemão. 

— Tudo bem, mas o que isto tem a ver com os judeus e os nazistas? Você mesmo disse que eles sempre foram perseguidos e que, provavelmente serão outras vezes. Por que eu tive que ouvir aquela história horripilante?

Meu pai bebeu o último gole, inclinou-se para frente e disse.

— Realmente, eles (e outros) podem vir a ser perseguidos no futuro. Mas nunca, nunca mais pelos alemães. Para que isto não se repita, os alemães têm que se lembrar. Portanto, lembre-se sempre do que ouviu hoje da boca de uma vítima. Apenas uma entre milhões.

Um pouco antes de morrer, quando o Caio já tinha nascido, numa daquelas conversas que sabemos que serão as últimas, meu pai disse.

— Se você vier a requerer a dupla cidadania, seu filho também será alemão. Conte a ele o que você ouviu do Sr. Silberstein, na sauna.

 

— É por isso, meus filhos, que vamos hoje ao Museu Judaico. Eu sei que Berlim tem muitas outras coisas para vermos. E uma semana é pouco. Mas isto é importante.

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