MENINA DA ÁRVORE
Talita Salles

Eu nasci há muito tempo. Quando tinha cinco anos, brincava nas feiras e nas ruas; minha casa tinha muros baixos, com flores plantadas do lado de fora e uma grande jabuticabeira do lado de dentro. O jardim era bonito, e a árvore tinha um balanço que ia alto, tão alto que eu pensava que estava voando no céu. A casa era alegre, meus pais, divertidos. Foi assim que eu cresci. Com minha jabuticabeira, seus frutos e seu balanço. Porém... foi nesse lugar que morri. Eu morri há muito tempo.

— Helena!

A mulher suspirou ao ouvir seu nome. Deixou o lápis sobre a mesa, observando as páginas em branco e pensando no trabalho a concluir. O desânimo ameaçava dominá-la novamente, contudo, oh, o melhor seria atender o chamado do marido. Saiu do quarto e surgiu no topo da escada.

— Sim, Pedro?

— Vou buscar Joana e Gabriel na escola!

"Era só isso?"

— Obrigada! Cuide-se!

Acenou um beijo e sorriu. Para que zangar-se? Ele nada podia fazer. "Além do que, esta casa possui uma atmosfera tão agradável!" Passou a mão pelo corrimão de madeira de lei. Era uma bela casa, com um belo jardim, e espaço suficiente para as duas crianças se divertirem. Havia sido um verdadeiro achado, após a cansativa procura de meses a fio. Voltou ao quarto. Pela janela do cômodo, podia ver a rua, os automóveis, o jardim, perfeita vista para o trabalho. Um menino passou na rua, sobre um skate, para, na esquina seguinte, dar um giro e voltar a toda velocidade. Um garotinho menor brincava tranqüilamente na calçada, porém o skate, descontrolado, não poderia evitá-lo. Helena fechou os olhos, sufocando um grito, pobres crianças! Porém, quando os abriu, estava o menino apenas um pouco arranhado sentado no chão, o garotinho a alguns centímetros de distância, e uma menina, sentada sobre a árvore do jardim, a sorrir. As mães acudiram prontamente os dois rapazes, porém a menina havia desaparecido. Como? Helena ouvia as vozes na rua, conforme descia as escadas para verificar as condições dos meninos, e, quem sabe, conhecer algumas de suas vizinhas.

— Oh, Deus, que pavor!

— Sim, que perigo! Mas eles foram protegidos! Oh, como rezei quando vi o que ia acontecer!

— Rezou a quem, mulher?!

— À Menina da Árvore... a menina que protege as crianças.

Meu nome era Júlia Tunes, mas todos, exceto os da família, me chamavam por Menina da Árvore. Eu vivia sobre minha jabuticabeira, e de lá conversava com todos, brincando e me divertindo. Sei agora como todos gostavam de mim, porém naquele tempo não o sabia, apenas sentia que as pessoas gostavam de me ter ali sempre que passavam (e passavam sempre), para dar um olá, fazer um gracejo, receber um sorriso. Mas um dia minha árvore foi fraca. Um dia eu morri. O galho se partiu e meu balanço realmente me levou a voar por inesquecíveis segundos... Morri quase imediatamente, sem dor.

Helena estava ainda escrevendo quando Pedro chegou com as crianças. A menina de sete anos subiu às carreiras para dar-lhe um abraço apertado.

— Mamãe, mamãe, o papai fez um balanço para colocar na jabitu... jabuci... jatubi...

— Na ja-bu-ti-ca-bei-ra?

Joana se concentrou antes de falar.

— Jabuticabeira. É, sim! E eu e o Gabriel vamos poder balançar lá no alto!

— Junto com os passarinhos? — Helena sorriu, apesar da dor e receio no coração.

— É! Ou então mais alto! Veja o papai lá no jardim! 

A pequena saiu correndo antes que a mãe pudesse dizer qualquer coisa, e esta logo pôde ouvir gritos excitados e risadas divertidas vindos do jardim. Não resistiu: deixou o lápis sobre os papéis ainda em branco e correu para juntar-se ao trio no andar de baixo. O balanço já em seu lugar, passou um transeunte, que sorriu à alegre família. Se eram novos por ali? Sim, razoavelmente. Se pretendiam ficar para sempre? Oh, claro, por muito tempo. Se as crianças estavam bem? Sim, estavam. Esta resposta foi seguida de uma formidável demonstração por parte de Joana, que subiu na árvore e gritou a plenos pulmões que AGORA ELA ERA GRANDE! A isso, o rosto do senhor contraiu-se.

— Oh, cuidado, não suba nessa árvore!

— Mas o galho é forte! Não é papai?

— Sim, filha. Mas tome cuidado...

Os lábios contritos, a voz embargada, o homem olhou para a copa da árvore e murmurou, mais para si que para os outros ali presentes:

— O galho dela era forte... ela tomava cuidado... — Helena sobressaltou-se.

— Quem?

— Oh, desculpe... a Menina da Árvore. Júlia. Viveu aqui há trinta anos... uma bela menina. Quase tão bela quanto você, florzinha! — Joana, que havia descido sob ordem do pai, riu gorgolejantemente. A mãe sorriu, condescendente. Ele continuou: — Creio mesmo que ela seja hoje mais santa que os santos católicos... era tão doce! E já fez tanto por todos... hoje protege as crianças... Seu túmulo, no pequeno cemitério, está repleto de flores, presentes. As pessoas a adoravam. — o olhar entristeceu-se — Mas um dia caiu da árvore. De um galho forte... que quebrou. Não suba nessa árvore, pequena.

— Mas eu queria ser a Menina da Árvore! Se bem que eu ainda posso ser a Menina do Muro, né?!

— Claro, querida! — Pedro resolveu acabar com a discussão. Pensaria no assunto depois. No momento, o que faria seria pegar Gabriel e... 

— Helena, cadê o Gabi?

— Hein?

— Cadê ele???

Depois disso, as pessoas que sempre passavam passaram a deixar pequenas lembranças sob minha árvore ou sobre meu túmulo, contavam-me histórias, contavam tristezas e alegrias, como se eu estivesse ainda lá, como se nada houvesse mudado. Alguns se lembravam que eu estava no céu e me faziam pedidos. Pedidos realizados, notícia espalhada. "Mas desde viva... lembro-me de uma vez que disse a ela que ansiava por curar-me de certa doença e na semana seguinte estava são!" "Era um amor de menina... sempre, depois de uma visita a ela, minha casa ficava mais alegre, mais saudável, mais viva!" Até que descobriram algo que acontecia com maior freqüência.

O quarto era todo branco, quarto de hospital. Os pais, já esgotados com o tempo passado no local, não faziam mais que sentar e esperar, as mentes vazias sem querer pensar no pior. O homem os acompanhara até ali, e, no momento, distraía Joana com histórias, lendas, evidências e simples descrições da Menina da Árvore, que tanto parecia com ela. Joana perguntava, falava, entristecia, mas principalmente, tornava o ar mais leve. "Mas por que ela tinha que morrer?" "Nós seríamos boas amigas..." "Os galhos são tão frágeis assim?" "E por que meu irmãozinho está machucado? Por que ela não cuidou dele?" "O Gabi vai ficar bom, né?"

— Talvez não, Jô. Foi muito sério, o médico disse... mas a gente espera que fique, não é?

— Mãe... a gente pode... posso... pedir para a Menina cuidar dele? — os olhos cheios de lágrimas.

Uma troca de olhares entre os pais e o estranho, que já se havia apresentado a essa altura, e ela confia. Não podia deixar a filha presa o dia inteiro no hospital, e... se diziam que ela ajudava... que custava tentar?

— Sim, filhinha, pode sim... e leve uma flor pela mamãe, também.

Da minha árvore, eu conhecia o mundo, voava acima dele em detalhes, tudo sabia. Não sei dizer muito bem como, mas sentia que vivia lá há tanto tempo que, como a árvore, conhecia tudo sem precisar me mover. Expliquei uma vez a um menino o caminho de casa. Conheci outro, que não falava, e da minha árvore o fiz conversar fluentemente. Ensinei meninos a brincar, ensinei meninas como fazer quitutes de grama... chamei a ambulância para um atropelamento. Quantos anos tinha eu? Seis, sete, que importa. Eu era uma criança que fazia milagres. Depois de morta, fiz muito mais. Salvei crianças de perigos imediatos, salvei bebês de morte a longo prazo, restaurei a saúde de crianças enfermas, cuidei de lares e crianças enquanto os pais estavam fora. "A Menina da Árvore — Padroeira das crianças e das causas sem alegria".

Os lençóis já não eram imaculadamente brancos, molhados do algum sangue que esvaíra do corpo infantil. A mãe via, aterrorizada, a vida do filho escapar por entre seus dedos, seu filhinho, que ainda cedo estivera sorridente, desejoso de ir à escola e aprender o que quer que fossem ensinar, a havia abraçado com tanta força que ela brincara estar sufocando! E não podia sequer afagar os cachos negros da cabeça infantil, pois o menino não podia ser tocado. Os médicos haviam sido bastante pessimistas, afinal a cabeça fora atingida, e não se podia ter certeza da extensão dos danos. Para agravar a situação, Joana saíra já há mais de duas horas com o pai e o desconhecido e nenhum dos três retornara... sabe-se lá o que poderia ter acontecido.

Helena observou o rosto do menino inconsciente. Momentos tão alegres... também momentos de apreensão. Porém haviam superado a tudo juntos, e o que seria agora? As lágrimas turvaram-lhe a visão, o leito tornou-se mero borrão, os cabelos morenos, mera mancha negra no fundo branco. E ela estava sozinha para chorar, ninguém dos seus estava ali para consolá-la. Havia-se descuidado por um momento do menino e dera nisso! O pranto descia livre... interrompido com a chegada do médico.

O doutor parou, examinou os monitores, andou, rodeou o leito, examinou o menino. Andou, observou novamente os monitores e sua expressão era de desânimo, quando um leve sorriso surgiu no canto de seus lábios e foi aumentando até tomar-lhe o rosto todo.

— Bem, madame, ele está agora fora de perigo de vida. Não do perigo de seqüelas, mas viverá.

Helena olhou o doutor. E novamente. Ainda outra vez. Gabi iria viver? As lágrimas voltaram com intensidade redobrada, e o doutor, resmungando algo como "compreendo, com licença", se retirou do local. Helena nada via que não suas próprias lágrimas e o leito do filho. A visão turva, talvez não visse direito, mas... sorriu. As lágrimas ainda sorriam, mas agora havia um "talvez sim" em sua mente. Passos. Porta.

— Lena, como ele está?

— Ele vai viver, Pe.

— Mamãe!!! A gente colocou flores para a Menina... e rezamos... e estava tudo tão bonito e ela disse que ia ajudar meu irmão... que ele não ia morrer... Ele não vai morrer, vai, mãe? Não vai, não é?

Helena apenas sorriu e abraçou a filha e o marido. Talvez, afinal.

— Não, Jô, não vai...

— Então ela o salvou?

Foi o estranho que respondeu:

— Quem sabe, menininha, quem sabe... mas devemos agradecê-la sempre... ao menos por ter tentado... ou talvez só por ter existido.

Dizem que os mais sensíveis vêem minha imagem na jabuticabeira em que vivi. Alguns percebem minha sombra próxima aos acontecimentos. Assim como Helena me viu à cabeceira de seu filhinho, Maria me viu cuidando do gato de sua filha quando esta não pôde fazê-lo, e outras pessoas me vislumbraram em diferentes ocasiões. Dizem que eu era loira, com olhos castanhos e belos, um sorriso que alegrava. Dizem que nos dias de sol volto a brincar na árvore. Confundem milagres e aparecimentos fantasmagóricos, mas continuam a me pedir graças que... dizem que atendo. Talvez Deus saiba. Afinal, eu só via até onde minha árvore me permitia ver.

Na semana seguinte, um exemplar de jornal e uma plaqueta adornavam o túmulo da garotinha: 

"Agradeço à Menina da Árvore
pela graça e alegria concedida
21/11/01
Helena, Joana, Pedro e Gabriel"

O exemplar continha um conto sobre uma menina que tudo via de cima de uma árvore.

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