MIOPIA
Luciana Priosta

Nunca a louça foi tão bem lavada. Não que tivessem baixelas de prata ou jogos de jantar para banquete. Três pratos, muitos copos de massa de tomate e três panelas. E quatro garfos. Tinha também uma colher de pau que a mãe de uma das meninas havia doado. Vivia embolorada. A única faca era dos vizinhos do 102. Não tinham lá mais talheres do que elas mas na última briga resolveram deixar a faca sob custódia das garotas. República de homens é hard. Naquele muito bem comportado lar com-vento eram muito mais civilizadas: qualquer quiproquó era resolvido a puxões de cabelo, sem derramamento de sangue.

Vez em quando Dora espichava um olho xereta pela fresta da porta. Nada. Ô casalzinho devagar! E dá-lhe limpol. Perguntou aos seus botões se detergente dava barato. Estava quase entornando um gole quando ouviu um barulho. Espiou pelo corredor. A porta do quarto estava fechada. Uma dorzinha aguda lhe espetou a barriga. Ao menos haviam feito a gentileza de colocar travesseiro e lençol para fora. Contrariada por ter que dormir na sala sem cortinas, pegou a trouxa do chão. Começou a entoar uma ladainha de "eles lá no bem bom e eu aqui no sofá" interrompida abruptamente por algo espetando seu pé direito. É bom esclarecer que o carpete do apartamento não era assim carpete, carpete. Se tivesse alguma etiqueta viria lá: 50% fibras desconhecidas e 50% arame farpado, casca de ovo e bombril. Portanto sua reação é compreensível. Apenas foi lavar o pé com sabão de coco. Era o único anti-séptico que existia no apartamento. E foi dormir. Nem se preocupar em saber o que havia entrado na sola do seu pé.

Esfregou os olhos pela manhã e se arrastou para fora da cama. Se sentia meio ameba ao acordar. Tinha que esticar os pseudópodos pela casa para poder se locomover. Ao sentir uma dor aguda, despertou imediatamente! Maldito carpete! Lhe espetou o outro pé. Sentiu uma raiva descabida para o acontecido. Sua vontade era picar em pedaços o carpete. Caiu no chão decidida a arrancar aquela forração assassina o jogá-la janela afora! Tateou pelo chão bufando até encontrar um par de óculos esmigalhados. Sentiu congelar-se. Tocou os cacos no chão com a ponta dos dedos. Eram os óculos dele... os óculos dele! E ele lá no quarto, talvez na sua cama, se esbaldando. Temporariamente destituída de qualquer razão pisoteou os óculos até que as lentes virassem pó. 

Prova de antropologia III. Bem, basta dizer que a professora não estava interessada em como o detergente é capaz de destruir a camada lipídica da derme ou nas maravilhas germicidas do sabão de coco. Dora caminhou até o bandejão com um nó na boca do estômago. Bandejão é o nome carinhoso dado ao restaurante universitário que servia bifes 007. Com licença para matar. Da fila, notou sua colega de república indicando-lhe com um aceno o lugar vago ao seu lado. Arrastou-se com sua bandeja até lá. Controlando-se para não puxar os cabelos da colega de quarto, conseguiu perguntar entredentes: E aí? E aí nada. Ele era míope. Espantada, Dora cala-se. Além de míope o cara era um poeta. Na euforia, seus óculos haviam caído "nãoseionde". Dora arregalou os olhos e soltou um ah! baixinho. Ele não podia conceber união carnal nenhuma sem poder contemplar o rosto de sua eleita.

- Já viu desculpa mais esfarrapada? Esse povo da filosofia não sei não...

A alma de Dora ria baixinho ao pensar que, depois do que havia feito com os óculos, ele não poderia contemplar rosto nenhum por um bom tempo.

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