IMENSIDÃO AZUL
Rodrigo Stulzer Lopes

Pedro, com 5 anos, tinha um grande ciúme. Na verdade era um ciúme misturado com inveja. Não gostava de dividir nada com seus amigos, mas também não perdia uma oportunidade de desejar as coisas que não tinha, seja de coleguinhas ou das vitrines de lojas, que via no Natal.

O ciúme e a inveja são forças poderosas que a maioria das pessoas possui em maior um menor grau. Quem nunca viu um sorvete bonito e cremoso cair no chão, quando alguém o está cobiçando? Essa é a força do ciúme, demonstrando o seu poder, de modo simples e inconsciente. Até aquele momento ninguém conseguira controlar esta força e a maioria nem entendia que a queda do sorvete era realmente causada por ela. Esta situação era mais uma daquelas que estava no inconsciente coletivo das pessoas e que acontecem de forma corriqueira na vida das pessoas.

Com Pedro era diferente; ele tinha plena consciência desta força e, por sua imaturidade usava-a de forma indiscriminada. Não era como uma força qualquer, não conseguia invocá-la a qualquer momento, como quando deseja-se levantar um copo da mesa. Somente em ocasiões especiais, onde o ciúme e a inveja afloravam é que conseguia dominá-la.

A primeira vez que a força se manifestou foi no seu aniversário de sete anos. Ganhara uma bicicleta nova e todos os seus primos queriam experimentá-la. Pedro não deixou nenhum deles usá-la, mas, após insistência da mãe, acabou cedendo. Resultado: três dos primos tiveram pequenas escoriações, caindo com a bicicleta na frente de casa e a brincadeira acabou quando Caio, filho de sua Tia Leonor, quebrou o braço. A bicicleta virara o guidão de forma violenta, sem que Caio tivesse esboçado qualquer intenção de fazê-la. Pedro sentiu vergonha do ocorrido, mas logo esqueceu o fato; afinal ele só queria a sua bicicleta de volta. Não tinha consciência de que contribuíra para que os acidentes tivessem acontecido.

E os anos foram passando e nunca fizeram as ligações entre fenômenos estranhos e o pequeno Pedro. Não entenderam porque o Tio Rafael quase se afogou naquele domingo no clube, nadando na piscina com jovem garota, linda, que acabara de conhecer. Nunca entenderam o que aconteceu com o filho do novo vizinho, rapaz que todos do bairro estavam falando. Era muito inteligente e fazia o maior sucesso na escola. De repente começou a ficar doente, vomitando tudo o que comia. Alguns até disseram que aquilo deveria ser mal olhado, por causa do sucesso do menino, mas ninguém deu atenção a isso. Depois de algumas semanas com tratamentos infrutíferos no hospital local, acabaram mudando-se para outra cidade maior, com recursos melhores. Foi uma decisão acertada. Em pouco tempo o menino estava normal novamente. Os médicos nunca diagnosticaram o que havia acontecido com ele.

Com o passar do tempo Pedro começou a fazer as ligações. Notou que pensava coisas e elas, às vezes, aconteciam. Gostava de seu cachorro, mas queria ganhar um gato como o da sua prima Clarissa. O gato dela ela lindo e peludo, branco como a neve. Seu cachorro era legal, mas tinha o pêlo curto e vivia fazendo xixi em qualquer lugar da casa. O gato da Clarissa, ao contrário, só fazia xixi dentro de uma caixinha de areia; era limpo e ficava deitado na sua almofada, aos pés dos donos da casa. Pedro imaginou como ficaria aquele gato se não tivesse todo aquele pêlo; coitado, deveria parecer bem feio, raquítico. No outro dia Tia Luciana, mãe da Clarissa, ligou para a sua casa. Estavam a procura de um bom veterinário, pois o gato estava com problemas. Achavam que era algo que tinha comido, pois o pêlo havia caído todo. Pedro ficou perplexo, mas, ao invés de contar para sua mãe, começou a fazer alguns testes.

Descobriu que o segredo era em vislumbrar a cena como se ela estivesse acontecendo diante de seus olhos. Deveria pensar em cada detalhe, cada cor, cada cheiro da situação. Quanto mais perfeito o pensamento, mais próximo do que havia imaginado as coisas aconteciam. Assim, após algum tempo, dominou a técnica de fazer as coisas acontecerem para as pessoas. Usava seu poder para tudo o que tinha ciúmes ou invejava. Mesmo sem ninguém entender nada, uma aura pairava sobre Pedro. Na escola, nunca mais pediram-lhe lápis de cor emprestado; nunca mais precisou dar um pedaço de seu lanche para os colegas. Sentia que estava-os ajudando, pois invariavelmente seus amigos passavam mal quando comiam seu cachorro quente ou bebiam um golinho de sua coca-cola.

Um dia Pedro achou que verde não era uma cor legal para as plantas; vermelho seria muito mais bonito. Imaginou-se brincando no pátio de casa, correndo pelo gramado vermelho e escalando a árvore de maçãs. Pensou um pouco melhor; vermelho acabaria ficando muito chato. Precisaria achar uma cor melhor, mais calma. Azul seria mais bonito. O mar é azul e as plantas ficariam belas tendo inúmeras tonalidades de azul. É isso mesmo, azul era o que queria.

Naquela noite concentrou-se bastante, pensando no quintal do fundo de casa. Pensou no gramado, na árvore de maçãs e em todas as flores que sua mãe plantava. Pensou também na pequena horta, adubada com aquele horroroso cocô de galinha, que seu pai adorava cuidar. No dia seguinte acordou com a voz alta de sua mãe. Ela estava conversando com a vizinha sobre a súbita mudança de cor de suas plantas. Seu pai chamou um médico de plantas, um tal de agrônomo, e ele não descobriu nada. A única coisa diferente era que as plantas estavam azuis. Ele levou algumas amostras das plantas para tentar ver no laboratório o que teria acontecido.

Alguns dias depois o agrônomo voltou à sua casa. Trazia um relatório que dizia que as plantas tinham perdido um negócio chamado clorofila. No lugar dela uma outra substância havia tomado o seu lugar mudado as funções de respiração. O mais interessante disso tudo era que agora as plantas respiravam oxigênio e expeliam gás carbônico, ao contrário das plantas normais. Todo o resto permanecia da mesma maneira. Ele não entendia nada daquilo, só sabia que agora o quintal era azul, do jeito que imaginara.

Já fazia duas semanas que o seu quintal estava azul. Plantas azuis, macieira azul e até horta azul. Pedro gostava de comer as alfaces. O gosto era praticamente o mesmo, mas a cor era muito mais bonita. Sua mãe não deixava-o comer, mas ele pegava-as escondido, quando ela ia no mercado, nas terças-feiras depois do almoço.

Pedro já estava entediado com tudo aquilo, queria fazer algo realmente grande, algo que todo o Mundo sentisse. Foi quando teve a brilhante idéia de pensar que todas as plantas do mundo poderiam ficar azuis. Imagine só, tudo azulzinho, igual ao mar. O nosso planeta seria, definitivamente, o planeta azul.

Nos meses seguintes a mãe de Pedro notou que o menino estava estranho. Todos os dias, sempre à mesma hora ficava parado, concentrando-se. Achava isso salutar, pois poderia ajudar ele na escola e na sua vida futura. Seria uma fase que logo passaria, pois deve ter se influenciando pelos desenhos japoneses da TV. Ela não conseguia assistir mais de cinco minutos daquilo, mas já notara que os personagens dos desenhos sempre se concentravam antes de participar daquelas lutas. Lembrou da época em que Pedro fingia ser o Super-Homem. Ainda bem que aquela fase passara, pois a toda hora ela tinha que colocar remédios nos machucados que ganhava, por tentar voar e cair da macieira. Pelo menos agora ele ficava quietinho.

Numa de suas idas ao mercado, Estela teve a impressão que as árvores da cidade estavam adquirindo um tom mais azulado. Será que era verdade ou era influência do seu quintal onde, inexplicavelmente, todas as suas plantas estavam daquela cor? Achou que era somente impressão e foi para casa. Naquela noite, depois do jantar, viu uma notícia que confirmou os fatos da tarde. Um fenômeno estranho, assim dizia o apresentador, estava acontecendo com as plantas em diversos pontos do país; suas colorações estavam passando do verde para o azul. Cientistas trabalhavam com amostras e não conseguiam explicar o que estava acontecendo. A população não precisava se alarmar pois os testes já provaram que a mudança de cor não havia influenciado as características alimentícias das plantas. Pedro sorriu com orgulho, estava conseguindo fazer a mudança que custou-lhe diversos meses de concentração.

Um dia cansou-se daquela brincadeira. Resolveu parar de se concentrar e achou outra coisa para fazer. Parou de reservar parte da tarde para isso e voltou a brincar. Indiferentes ao menino, as plantas continuaram a sua lenta e progressiva mudança de cor, espalhando o azul nos seus mais diversos tons por todos os pontos do globo. As notícias continuavam e as manchetes dos jornais só falavam a respeito da mudança de cor das plantas. Pedro não entendeu por que as mudanças continuavam mesmo sem ele estar se concentrando, mas não ligou para isso; afinal, gostava mesmo da cor azul.

Duas semanas depois que os primeiros focos da Peste Azul - como a imprensa sensacionalista estava chamando o fenômeno - começou a se espalhar pelo mundo, veio a notícia que fez Pedro se arrepender do seu experimento. O nível de oxigênio do planeta estava caindo e os cientistas projetavam que em cerca de seis meses ele estaria seis por cento menor que os níveis atuais.

Pedro voltou a se concentrar, agora pensando fortemente que gostaria de ter as plantas verdes de volta. Não adiantou; passaram-se dois meses e nada havia mudado; as plantas estavam agora completamente azuis e por mais que ele se concentrasse nem um verdinho sequer voltava a aparecer.

Pedro havia perdido o seu poder. Não conseguia nem mesmo fazer a bola de sorvete de seu colega cair no chão, mesmo que se concentrasse bastante. Ele ficou assim depois que leu um jornal e assustou-se muito. Lá dizia que com os níveis de oxigênio que o planeta estava chegando eram considerados alarmantes. Em um ano a previsão era que metade da biosfera mudasse radicalmente. Não conseguiam prever se sobraria comida para todo mundo.

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