A CAVERNA
Sérgio Galli

Em tempos de irmão grande, espetáculo de realidade, caravana da fome no vale da miséria, me à mente e ao coração um misto de inveja, ciúme, saudade, nostalgia, descrença, desencanto, indignação que me leva de volta ao pretérito do futuro mais que perfeito das cavernas, ali sim, real, ainda com uma certa espontaneidade, honestidade, claro que com um certo desconforto.

Aparentemente o governo mudou. O PT (uma invenção do então todo poderoso general Golbery e da Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros) e a máfia do dendê, ou tropicalistas, chegam ao poder para, como bem disse um personagem de "O gatopardo", do escritor italiano Lampesusa -- que virou um belo filme do Luchino Visconti — "é preciso mudar para que tudo fique como está". Ou seja, Lulinha paz e amor e sua troupe irão continuar e avançar nas mesmas cantilenas do FFHH. Para que isso? Melhor retomar o velho slogan dos anos de chumbo, "chega de intermediário, Anne Kruger (diretora do FMI, para presidente". Afinal, o mito Lula é realçado, reafirmado, incensado pelo marqueteiro de plantão. Quer dizer, circo & circo, pois a tour da fome, ou o fome zero não passam de marquetingue. Sugiro ao Lula e seus comandados que leiam "Vidas secas", do Graciliano Ramos, é muito mais produtivo que mais uma programa assistencialista que simplesmente é mais uma repetição de outras tantas marcas, leve-leite, bolsa-escola, bolsa-alimentação, bolsa ou bolso, bolsa ou a vida. Enquanto isso, as estruturas seculares que vivem justamente da fome, da seca continua intacta, a freqüentar palácios, suntuosos regabofes, festins planálticos, enfim, íntima da corte, seja a velha ou a nova. Os protagonistas do verdadeiros espetáculos estão fartos dessas cenas de teatro de horror.

Por falar nisso, lembrando um diretor e cenógrafo russo, Dziga Vertov, "quem não tem nada a dizer, hipertrofia o cenário". Também vale a pena outra citação desta vez de um teatrólogo brasileiro, Antunes Filho, "é a globalização da excrescência". 

Na superfície açucarada de glacê, acrescida de doses flambadas de positivismo, iluminismo, ciência, tecnologia, progresso, vivemos no melhor dos mundos, a felicidade é uma caverna com microondas, freezer, dvd, casa de teatro, tv digital, computador, celular, internet, ciberespaço, sucrilhos, leite longa vida, treinador pessoal, terapeuta, academia de ginástica, manteiga leve, suco dietético, energéticos, caneta esferográfica, scuds, mísseis, cocaína, ecstasy, êxtase, óliude, ratinhos, gugus, faustões, JN, esperanças vãs, ações, cifrões, dólares, euros, money, money, money argent ......................................................................................

Os dias de paraíso perdido, irmão grande, podem estar no fim. A generosidade da natureza tem limite. A biosfera está na exaustão. A fúrias hedonistas e consumistas deixa seus rastros e suas seqüelas. Se a população do hemisfério sul tivesse o mesmo padrão de consumo da parte rica dos habitantes do hemisfério norte precisaria de mais dois ou três planetas. Será que a humanidade precisa desse monte de quinquilharias expostas nas prateleiras do supermercado da esquina? Precisa de quinhentas marcas de pasta de dente? De sabonete? De xampus? Ad infinitum. Ou muda-se o padrão de produção e de consumo ou nada será como antes se é que será ou estará. Doce ilusão. Isso contraria a lógica capitalista e sua retórica de crescimento, desenvolvimento, lucro, competitividade, produtividade, ajuste fiscal, superávit primário, e outros jargões de economistas, profissionais de RH, administradores, bajulados por jornalistas, advogados, psicanalistas, engenheiros, e, claro, publicitários e, finalmente, com a subserviência de parlamentares, ministros, prefeitos, governadores e presidentes de plantão.

De volta ao eterno retorno do pretérito imperfeito da caverna da qual nunca saímos, sem conforto, sem inveja, ciúme, nostalgia, mas com muito cepticismo, resta-me Bach, Beethoven, Brahms, Bartok, Coltrane, Gismonti...


Verão insuportável (que abril venha logo) de 2003
ps: sugestões de leituras: "O homem duplicado", de José Saramago. "Tempos interessantes", de Eric Hobsbawn. "Felicidade", de Eduardo Gianetti. E qualquer coisa do Edgar Morin.

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