SERÁ MARIA?
Adlai Hoartmann

Um silêncio viscoso acordou-se junto a pele dele, enojado decidiu lavar-se debaixo de um chuveiro morno, dias quentes eram aqueles, lembrou-se disso, sabonete babando espuma, também de que choveria talvez no domingo, clima estranho esse, cheio de talvez, pensou, previsão é para perdedores, percebeu, as gotas caíam caladas, olhou o chuveiro, ao seu ver funcionava corretamente, mas de uma maneira estranha, cuspia calado seu jato de água, estranhado, cutucou com os nós dos dedos a parede a procura de ruído, as paredes lhe responderam surdas, eita, pensou, quis falar assim: eita!, interjeição é ruído literário eficaz, mas ao tentar o eita engasgou-se e tossiu uma tosse tão introspectiva quanto uma máquina de lingüiças e tossiu duas latas de extrato de carne, viu que o silêncio estava grudado em tudo, até nas metáforas, enrolou-se na toalha escondendo as vergonhas e saiu para a janela atrás do mundo, pensou, o mundo ruge, o mundo ruge, ao abrir a janela nem uma lufada de brisa veio recebê-lo, procurou o ruído em todo o lugar e acabou não encontrando ninguém, onde diabos está todo mundo?, contraiu as sobrancelhas lividamente como se elas dissessem, se pudessem, caralho!, coçou a cabeça ainda molhada, os cabelos pesados de silêncio, o silêncio nunca tinha sido assim, tão fluído, lembrou-se de sua vizinha do lado, a senhora protestante das orações vigorosas e dos choros contidos que lhe pedia dinheiro emprestado, mas que sempre pagava, sempre o convidava para o culto na Igreja mas que nunca aceitava, porque estava sempre ocupado, sempre lhe sorria um sorriso de quem te quer no Reino dos Céus, mas sempre com a vozinha ridícula que o irritava, estridulada como um esforço de asma, sempre a mesma vozinha lhe recebendo, oh vizinho, oh! cansado da vida hoje vizinho? lembrou que ela pudesse lhe ajudar neste momento, algum ruído qualquer para lhe arrancar aquilo que não se desligava do corpo, como cheiro ruim, como cebola nos dedos, atravessou o corredor até a outra porta e tocou a campainha, sem música, por três vezes seguida, bateu na porta em desespero torto, calado de madeira, duro, tentou chamá-la mas esqueceu o nome, putz, o silêncio, como é que é mesmo o nome dela?, olhou no relógio, o nome, o nome dela, ainda poderia dormir por mais quinze minutos, ponteiros sem tic e sem tac, o tempo ainda assim escorria, voltou para cama pra dormir, será Maria? 

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