NA ESTRADA
Carlos C. Alberts

O ronco surdo do motor instigava. O escapamento fora retrabalhado para gerar um som grave que impelia o pé direito do motorista para baixo. Eram mil e seiscentos centímetros cúbicos de capacidade volumétrica nos cilindros, gerando noventa e cinco cavalos-vapor. Em um carro de apenas novecentos quilos. Uma taxa de menos de dez quilos/cavalo. Pneus 185/60, calçando rodas com aros de catorze polegadas. O contato com o solo, principalmente nas curvas, gerava outro ruído agradável. O mesmo com as pinças do freio sobre discos ventilados, quando o pedal do centro era acionado. A passagem do ar quase não se fazia notar, a não ser que o vidro lateral estivesse aberto em um ou dois centímetros. Completando a sinfonia, Zé Ramalho, do álbum acústico, galopava:

“...Que fazem o homem se desenganar
Há peixes que lutam para se salvar
Daqueles que caçam no mar revoltoso
E outros que devoram com gênio assombroso
As vidas que caem na beira do mar

É, na beira do mar...”

Na boca, o chiclete sabor canela. Na corrente sangüínea, a cafeína de duas Pepsi light. Nas mãos, luvas de couro abertas atrás e cobrindo apenas a metade de cada dedo. Do tipo que os pilotos usam.

As primeiras três horas de viagem tinham sido excelentes. Média de cento e quarenta e quatro quilômetros por hora. Diversão. Depois de uma semana em que trabalhara quase dezoito horas por dia. Assunto terrível. Armas biológicas desenvolvidas e estocadas durante o regime militar. O que fazer com elas e com as informações sobre o caso. Dirigir para acabar com o estresse. Por isso, sempre que podia, evitava viajar de avião.

Mas estava começando a ficar cansado. Não ia esperar completar quatro horas de direção, como fazia normalmente. Estava amanhecendo e, no alto da serra, a paisagem começava ser visível. Diminuiu a velocidade. Estacionou no acostamento, onde a vista dava para um precipício. Girou a chave, emudecendo o motor. Desligou o CD-Player. Abriu a porta e saiu.

Silêncio.

Respirou o ar gelado. Virou-se para o Leste. Durante cinco minutos acompanhou o progresso do sol na sua labuta por superar os picos mais altos. O silêncio começou a ser substituído pelo som do vento e o ruído da vida que se escondia na vegetação. Lembrou das fotografias. Presos políticos como cobaias. Inoculados com os agentes patogênicos. Voltou rápido para junto do carro. Face contraída.

Esticou o corpo. Substituiu o chiclete por um novo. Entrou no carro. Colocou o poderoso motor para funcionar. Ligou o som:

“...Do meu pensamento já podem levar
No peixe de asas eu quero voar
Sair do oceano de tez poluída
Cantar um galope fechando a ferida
Que só cicatriza na beira do mar

É, na beira do mar...”

Arrancou o pequeno automóvel com um ruído agudo dos pneus largos. A bordo da cacofonia errante, fugiu. Do silêncio.

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