SILÊNCIO
Eduardo Prearo

A pessoa, a cuja mansão fui para uma visita, era jovem, apesar de nunca, jamais ter me revelado sua verdadeira idade. É que a voz bonita dela era a de alguém jovem. Era um sábado, dia de saturno; chovera o dia inteiro; acho que eram umas nove e meia, sim, nove e meia da noite. Ela me ligara duas horas antes, sedenta, ansiosa, brava, dizendo que chegara o momento de nos vermos, dizendo ter algo para mim, talvez uma missão. Ou, então, coisa parecida. Só nos conhecíamos por telefone, eu não sabia como ela era...

Escrevo o que escrevo ouvindo a conversa de dois homens. Sinto que meu próximo destino será uma favela ou então um posto meio abandonado, posto de gasolina. Quero crer que não preciso de silêncio para escrever. Mas ainda preciso. Os homens conversam sobre uma tal calcinha molhada, sobre seus receios atuais quanto a enfiar o dedo na orelha de suas mulheres ou ex-mulheres. 

A tal criatura que eu desconhecia pessoalmente chamava-se Eusny. Houve uma época em nossa relação por telefone que pensei que ia pirar. Ainda vou pirar? Achava que Eusny era eu mesmo, um eco de mim, ou algo assim. Sua voz era parecidíssima com a minha... se bem que mais aveludada. Sabe voz de estivador? Sei lá, outras vezes parecia voz de alguém virgem, ou seja, de pessoa virgem. Na mesma voz a virgem e o estivador, a dama e o vagabundo, a bela e a fera... tudo parecia caber naquela voz. Menos minha ternura, mas agora é tarde...

O portão destravou romanticamente e na porta uma mulher alta, muito alta, e esguia, quase enguia, berregou:

— Entre Eduardo. Sente-se. Gostou da decoração? Tome este drink, irá se sentir melhor.

Achei a sala muito confortável. Móveis brancos, tapetes persas brancos, até o copo em que eu bebia era branco. A mulher, aquela altona, olhava para mim com desconfiança, parecia que a qualquer momento ia pedir algum documento, uma carteira de trabalho para ver se eu trabalhava realmente e se sim, há quanto tempo.

— Eusny vai me atender?

— Já-já, querido. E dizendo isso, retirou-se.

Glória a Deus, eu repetia mentalmente. Até que enfim Eusny me deixará vê-lo! Por que todo esse mistério? Eusny... Eusny... Eusny... será que sou tão pecador assim, tão feio assim, tão inimigo, tão vulgar e pouco másculo, e pouco muita coisa, ou muito pouca coisa? De salto, as imagens, tudo ao meu redor, foram ficando embaçadas. A sala deixara de ser sala. As nuvens de Cristo no Paraíso entravam pelas janelas, pelas frestas...o som era ensurdecedor...aquelas nuvens...o chão tremendo...aqueles sinos...

Escrevo o que escrevo agora ouvindo outra conversa, mas talvez seja alucinação: dois homens cochichando... Há também um rádio ligado, sintonizado nas últimas notícias, mas não é o meu. O mundo é menos cruel que eu, eu sei. E não sou lá um exemplo saudável, um exemplo positivo. Há ainda muito preconceito no mundo, em mim, no mundo... O que quero saber é se sou mesmo um errado.

Acordei num quarto vazio e branco, almofadado até as paredes... Não achei a porta nem a janela. Eusny devia me detestar, pelo visto, pensei...

— Oi, Eduardo, tudo bom?

— Obrigado, Eusny.

— Brigado, você está brigado, Dudu?

— Obrigado por seus conselhos nesses meses todos. Eles jogaram-me no fundo de um lindo poço...

— Eduardo? Você está me ouvindo? Tá bom, tá bom. Vou fazer um teste com você. Vai entrar aí Marco, e como veio ao mundo...

Marco entrou por uma porta embutida que nunca imaginei que fosse ali, e tirou o que restava de um modelito.

— Eusny, mande-o embora.

— Tá bom, Eduardo, tá bom. Sai Marco. Eduardo, você crê?

— Agora já basta, Eusny. Sei que você jamais vai mostrar seu semblante a mim. Mas vou continuar vindo a este lugar, tentar vê-lo de longe...

— Essa casa foi vendida, ontem... Estou indo para o interior...

— Eusny, por que tinha de ser assim? Se você for no meu enterro... aí vai me ver de perto, amigo!

— Você ou o senhor crê?

A porta se abriu e milhares de pardalocas entraram no pequeno quarto, milhares de pardalocas ao meu redor, me picando, tirando minhas roupas...

Amanheci caído no meio da rua...

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