SILÊNCIO
Nelson Moraes

"E quem há de não ver", ela continuou, "que o silêncio tem seu próprio alfabeto? Claro: o silêncio tem seus fonemas — diluídos como fantasmagorias do inaudito, sem experimentar a cristalização sonora, mas há todo um abecedário sugerido no mais profundo dos silêncios." Fiz que sim com a cabeça, fazer o quê?, e ela: "O silêncio por mais espesso que se apresente tem suas regras gramaticais, suas figuras de linguagem, seus hiatos que não passam de combalidos frêmitos da traquéia, seus dígrafos só ressonantes no eco de pensares remotos, suas vogais redondas e cheias de ar nunca exalado e já exaurido." Era minha vez? Não, ela só tomou fôlego para continuar: "As metáforas que o silêncio exala vêm em imperceptíveis cintilares de olhares já foscos, mornos e entregues. O silêncio também fica rouco, sim — e não somente nos oxímoros do bardo, mas no semblante que se desenha em torno de rostos que já cansaram de ser sutis. Escuta", e ela pôs a mão em minha mão, "Quer que eu te prove como o silêncio é também boquirroto?", e eu acho que fiz que sim, e ela falou, e ia falar, falar, falar, enquanto eu era agasalhado a contragosto no mais reticente silêncio ("pronto, descobri outro atributo dele", diria eu a ela se pudesse) tentando achar uma brecha para expor a minha bombástica tese que, esta sim, iria mudar o pensamento ocidental. A partir dali, daquela nossa mesa — que de silenciosa nada tinha.

fale com o autor

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.