CRYPTONITA
Paulo Henrique Pampolin

Nunca vi papai reclamar uma única vez de dor. Uma espécie de cyborg das antigas, parecia não feito de partes humanas. Não sentia dores, frio ou cansaço. Talvez a única dica que deixasse escapar era mostrar-nos que sim é humano, é o fato de que ama. Ama mamãe, nós filhos, os netos e os amigos como quem ama o ar que dá vida. Para mim sempre foi o grande herói. Mas, no caminho de todo Superman, sempre tem a cryptonita.

A fumaça que há mais de cinqüenta anos inspira entre um café e outro, fruto do fumo de corda, que artesanalmente por suas mãos vira, primorosamente enrolado em palha seca de milho, um cigarro, trouxe problemas. 

Na verdade a imagem que tenho é que assim como braços e pernas, o cigarro, quando não entre os dedos, sempre estava a espera de ser aceso, curiosamente colocado entre a orelha e a cabeça. Um belo dia seu pedido de ir a um médico foi atendido. Mal sinal, isso nunca aconteceu antes. Super heróis não costumam precisar de médicos. Era a cryptonita, que no zodíaco aparece entre Gêmeos e Leão. Instalou-se em sua garganta, sem dar trela para o fato de que se trata de um super- herói. 

Um método cirúrgico não poderá ser usado, pois apesar de super-herói, beira os oitenta. Inicia-se na próxima semana o martírio do tratamento que aos poucos derrubará seus últimos fios de cabelo e causará um mal estar.

É difícil para nós, pobres mortais, assistirmos a isso sem poder dividir essa dor. A impotência de não poder pegar essa dor sozinho e transferi-la para mim, para que o super-herói continue sua vida, me faz sentir um inútil. Bússola que sou, corro o risco de ficar sem meu norte. Papai sempre foi meu norte. Para que serve uma bússula sem norte? Não haverá orientação, não haverá rumo, não navegarei.

Queria mesmo entrar no concreto dessa parede e fazer parte dele, não sentir frio, calor, emoção, não sentir nada . Sentir dói. Não entendo por que coloco para tocar a alegria do B-52, mas nas acústicas sai a tristeza do Joy Division. Por alegre que seja a música, ela entra no meu ouvido como tema do silêncio.

Um silêncio incômodo de que as coisas estão acontecendo na minha frente e amarrado estou por linhas invisíveis, impedido de agir. Dói a sensação de impotência. Dói só ter vivido com papai e mamãe durante dezoito anos de minha vida. Quero girar ao contrário o relógio do tempo para abraçá-los mais, para dizer mais vezes que os amo, que são minha própria vida, que sou o amor que sentem um pelo outro materializado. 

Já é tarde e o tempo não espera. Estou cada dia mais distante do mundo que vivem e sei que o tempo nos distanciará ainda mais, até que estejamos em mundos diferentes, vivendo da saudade de um tempo que um dia existiu. 

E quando isso acontecer, covarde que sou, prefiro meu silêncio eterno a ter que aceitar viver em um mundo paralelo ao dele, sabendo que estará sempre junto, mas em pensamento e no coração. Não, isso não dá! Não sei aceitar isso, não aprendi. Preciso da presença física, acho-a indispensável. 

É preciso tocar, tenho o coração cego e assim, somente tocando posso ver. Minha imaginação não é fértil o suficiente para enxergar o não físico. 

Tenho dificuldade em aceitar que heróis adoecem. Mas, nunca me decepcionou, sei que apesar de o futebol nunca ter sido nosso forte, saberá bem usar as aulas de Ademir da Guia de nossa eterna e saudosa academia e driblará tudo isso.

Não deixará que a cryptonita o silencie. Eu sei disso.

Super-heróis são eternos. 

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