BRUTA IGNORÂNCIA
Beto Muniz

 
 

Nada como passar as férias na vila de infância em companhia dos pais, recordando amigos e lembranças antigas. Metade do tempo a gente fica pedindo informações sobre fulano, beltrano, sicrano... E os amigos que ficaram vão contando o sucedido com um, com outro e com a vila, como se nada tivesse mudado. Só para gente que veio cuidar da vida na cidade grande é que as coisas parecem ter mudado.

Como em qualquer cidadezinha do interior, nesta em que fui criado existia uma idiotice de turmas rivais. Chamo de idiotice porque não havia referências para uma versão rural de juventude transviada, selvagem da motocicleta ou qualquer sucesso hollywoodiano da época. Ao menos naquela parte do Triângulo Mineiro, onde cresci, posso garantir que dez entre dez rapazes desconheciam as peripécias cinematográficas do James Dean ou do Matt Dillon. Uma que não existia cinema na região, outra que nem eletricidade chegava por lá, muito menos jornais, revistas ou livros. O pouco que se falava era notícia local e se chegava alguma novidade era de interesse agrícola. Coisas da roça. Pois bem, mesmo sem influências externas cada bairro tinha a sua turma. Quando duas gangues rivais se encontravam trocavam sopapos e quando não se encontravam por vários dias seguidos, marcavam encontro e trocavam sopapos. Um combinado só pra manter alguma atividade já que a vila era muito calma. 

As turmas só não brigavam dentro da única escola, que na época era grupo escolar, a diretora era linha dura e os protótipos de bad-boys piavam miudinho na mão dela. O bairro Tiradentes, onde eu morava, tinha uma turma de dez a quinze molecotes liderados pelo Pardal. Sujeitinho bom de briga e por isso mesmo com respeitável fama entre as gangues rivais. Tinha fama também de comedor, mas o Beterraba, irmão dele, era tímido em excesso. Além de não se meter em avenças o Beterraba ficava roxo cada vez que uma menina olhava para cara espinhenta dele. Por isso mesmo levou o apelido de Beterraba.

Da primeira vez que disseram que o Beterraba era boiola o Pardal enfiou a mão nas fuças do desaforado e desafiou qualquer um a baixar as calças na frente do irmão. Ninguém era besta e o Beterraba continuou macho por mais um tempo. Depois num teve jeito, o Pardal não conseguiu bater em todo mundo e o Beterraba ganhou apelido novo nos três bairros rivais: Brioche. Passado um tempo até na turma do Tiradentes o apelido do Beterraba foi sendo trocado. 

Eu era o menorzinho da turma e não entendi a troca. Achava que se era pra mudar o apelido, que permanecessem na família das quenopodiáceas e, aliás, nem carecia trocar. Havia demorado a entender o por quê do apelido Beterraba e quando finalmente entendi não achava justo o povo trocar pra Brioche, que era um tipo de pãozinho fabricado apenas em Uberlândia, longe pra dedéu, e que a diretora tinha mania de encomendar ao Vicentin, antigo aluno e motorista da linha semanal, uma compota de plástico cheia deles. O povo da vila dizia que brioche era pão de gente rica e que os ricos comiam pouco e por isso que a diretora preferia os briochezinhos aos pães enormes que o Seu Lázaro assava no forno a lenha e vendia pra vila inteira — menos pra diretora. 

Naquela época eu já pensava demais e nunca chegava a uma conclusão. Eu sempre mudava o assunto no meio do pensamento e, quando percebia, estava pensando noutra coisa completamente diferente. Talvez fosse por isso que eu não entendia como é que um pão poderia ser produzido exclusivamente para gente rica. Se eu tivesse dinheiro para comprá-lo eu não poderia? Foi daí que começou a vontade de experimentar comida de rico! Dinheiro eu não tinha mesmo. 

Então, para satisfazer a curiosidade, numa quinta-feira eu esperei o ônibus estacionar e quando o Vicentin entregou a embalagem pra diretora eu pedi um brioche. Ela fingiu que não me ouviu e foi embora, caminhando rápido demais para uma mulher do tamanho dela. Depois disso comecei a duvidar dessa história de que rico comia pouco. Se ela comia pouco como é que era tão gorda? E o marido também era gordo! Como sempre eu terminei o dia me resignando com o pensamento de que o povo dizia muita coisa que eu não entenderia nunca. 

Prova disso é que estavam transformando o Beterraba em Brioche. O que tinha a ver o Beterraba virar baitola com os pãezinhos da diretora? Era melhor deixar pra entender depois, mas até entender eu seria contra a mudança. E tinha certeza que o Pardal também, mas não me solidarizei. Eu sabia que a qualquer comentário o Pardal poderia me encher a cara fácil-fácil! Era justo — eu pensava — um irmão boiola já era incomodo demais pro rapaz. Um desaforo! "Pra que incomodar mais com conversa besta? Deixe estar". Desaforo envolvendo a família, desde aqueles tempos, era parecido com sapo cururu e se tinha uma coisa que o Pardal não engolia era sapo. Ainda mais cururu!

Foi mais ou menos na época em que a diretora me negou um brioche, o pãozinho, que o Pardal, que já estava sem falar com o irmão, decidiu se ofender de vez com a baitolagem dele. E para mostrar o quanto reprovava a conduta do Brioche, definitivamente ex-Beterraba, convidou uns amigos mais chegados para bolçar o desaforo. Moleque é tudo besta mesmo, e foi só por isso que cinco ignorantes aceitaram a empreitada! Quatro seguraram, o menorzinho ficou vigiando, e foi o próprio irmão quem entuchou um cabo de vassoura no brioco do Brioche, que nem reagiu devido ao tanto de porrada que levou antes, pra aprender que fiofó foi feito como porta de saída e não de entrada.

O estrago virou notícia na cidadezinha, comentado à boca pequena. Teve até aposta que o rapazinho não desmunhecava mais só pela lembrança da lição. Que nada! O Brioche era burro que só, não aprendeu nadica de nada e foi só sarar o maltrato pra sair de casa se dizendo magoado com a família. Também pudera: Nem a mãe teve coragem de repreender o irmão agressor.

Pra desespero do Pardal e de quem havia botado dinheiro na banca acreditando que porrada transforma os gostos alheios, o Brioche pediu guarida na casa da Alzira Capivara. E a Alzira era uma alma caridosa que abrigava debaixo do seu teto tudo quanto é tipo de gente abandonada: moça desvirginada que o pai lançava no mundo, mãe solteira que botava filho pra vó criar, mulher desavergonhada que era pega botando cornos no marido... Pra bem da verdade, a Alzira era dona das oito casas da Vila São João, só que nessa época não tinha baitola lá no puteiro da Alzira e dizem que o Brioche foi a primeira santa a fazer sucesso na vila do Santo, e até saia passou a usar.

Foi tanto desconsolo que o Pardal foi embora da cidade e nunca mais se ouviu falar nele. Pra vocês verem que desde aqueles tempos os incomodados é que se retiravam. O irmão ficou desmunhecando a torto e a direito, mas não fez fama. Ao menos ninguém se lembra do Beterraba. Nem do Brioche. Não que eu o tenha procurado! Mas nessas férias em que a gente retorna à cidade de infância, é um tal de encontrar velhos amigos, de ficar pedindo informações sobre fulano, beltrano, sicrano... A gente parece turista de tão ignorante das coisas que sucederam enquanto esteve fora. Vai daí que a gente quer saber de tudo e de todo mundo. Sem discriminação.

 
 

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