A MUDANÇA
Fernando Zocca

I

Quintino aproximou-se do amigo que, sorumbático, quase morgava naquela praça deserta. A cabeça do desalentado era sustentada pelo braço esquerdo que tinha o cotovelo enfiado na coxa do mesmo lado. Na mão direita o cigarro fumegante, consumido pela metade, denotava o vício deominante do seu portador. Uma espécie de onda de comiseração ocupou a percepção do que chegava.

- E aí "véio"? A barra está pesada né? - Maurício gentilmente deslocou-se do centro para o lado direito do banco que ocupava. Em resposta às perguntas expeliu:

- Não está nada fácil suportar essa situação. Lá em casa só tem briga e desacerto. - Quintino aproveitou o espaço deixado pelo colega e sentou-se.

- Esqueça. Não fique se remoendo por isso. 

- Como assim esqueça? Pô! Meu, quero tomar Coca-Cola e não tem grana. Quero comprar o disco do Daniel e não há verba! Qual é cara?

- Você precisa trabalhar. É só isso. - Quintino estava certo. Mas percebeu que seu interlocutor não se convencera. -Olha - continuou ele - tem uma garota linda que está muito a fim de você. Penso que a conhece. Seus cabelos são curtos e negros. É comunicativa. Está terminando agora o colegial. Acho que vai fazer o vestibular para jornalismo.

- Eu não conheço. De quem você fala? Não é a secretária do doutor Buíque, o homeopata?
- É ela mesma. É mineira. Veio bem novinha para nossa terra. Seus pais eram professores. Trabalha com o Buíque há dois anos. É bastante emotiva. Se houver uma pendenga entre a emoção e a razão ela naturalmente inclina-se para a emoção. é tradicional. Não aceita idéias novas. Seu julgamento é rápido e pode ser parcial. Quando em dúvida busca apoio daqueles que pensam igual a ela. 

Maurício puxou profundamente a última tragada e atirando a guimba longe resmungou algo ininteligível cujo tom era efeito do pior dos maus humores.

II

O atormentado viu-se compelido a pensar numa só coisa. As fixações daqueles efeitos sensórios, antes produzidos, não se dissipariam de outra forma se não houvesse ação enérgica. Por isso, munindo-se de coragem, caminhou até o consultório do Buíque. Subiu, com o coração aos pulos, aquela escada íngreme, extenuante e longa demais. Na saleta, atrás da mesa pequena, alí estava ela: morena de compleição franzina, cútis alva, olhos grandes e castanhos. Os cabelos curtos deixavam antever que se longos fossem, cacheados seriam.

- Pois não? Tem consulta com o Dr. Buíque? - A voz clara, límpida, e bem articulada, serena e amena, estremeceu os nervos de Maurício.
-Eu...Eu...Não...Sim! Quero marcar uma consulta com o doutor. A congestão dos neurônios eferentes naquela espécie de eretismo punha as respostas em atropelo causando mal estar visível na audiente. Numa pré anamnese, Lúcia anotou o nome, idade, peso e a queixa principal do paciente. Tudo feito estocou:
- A consulta custa R$100,00! Uma descarga de adrenalina gelou o ventre de Maurício. As artérias se fecharam. A tez empalideceu. Nas mãos o suor brotou frio. Na consciência, flasbacks da sua casa, da praça e da rua sucediam-se num turbilhão estonteante. Tentava dizer algo, mas a garganta estava fechada, tensa. Faltou-lhe ar. 
-Eu... Não tenho... Quero dizer, eu... - Seus olhos procuravam uma saída. Ora fixavam-se na porta, ora na escada. Lúcia reparou o embaraço e tentou amenizar o sofrimento: - Tenho uma "janela" para quinta-feira, às treze horas. Se o senhor quiser posso marcar. - O "senhor" da frase adstringiu-lhe o períneo de tal forma que imaginou a urinação alí mesmo. Numa saída de "gênio" Maurício concordou com as treze horas da quinta-feira próxima. Afastou-se rapidinho. 

Na rua, caminhando apressado, ansiava por botar as mãos no Quintino. Queria enforcá-lo!

III

Imaginativo Maurício tentava encontrar razões plausíveis que justificassem aquela aprontada. Como interpretaria aqueles momentos tensos e horríveis que vivera? Gostaria de triturar o zombador. Voltou no dia designado para a consulta e foi direto ao assunto dizendo que não tinha dinheiro. Lúcia então perguntou ao médico se poderia atende-lo gratuítamente no final do dia. O médico assentiu.

O consulente saiu com o diagnóstico de esquizofrenia maníaco-depressiva. A terapêutica usaria medicação homeopática. Uma nova etapa se iniciaria desse momento em diante na vida do Maurício, que não se considerava estrovenga, nem estrupício.

IV

Depois de um semestre todo ingerindo aquelas mezinhas seu estado geral agravou-se. A intoxicação obliterava qualquer traço de alegria ou felicidade que por ventura ainda pudesse existir naquele ser conspurcado. Outra saída não teve o Maurício do que a de se consultar com espíritos de luz que baixavam naquele centro onde, supunham os ingênuos, operavam milagres. Mas seu estado complicava-se a cada dia que passava. Os passes e perorações emotivas não surtiam mais quaisquer efeitos aliviadores. Tais gestos não desembaraçavam sua mente da toxidez destrambelhante. Dava dó ver a penúria de saúde que se instalara naquele corpo feito à imagem e semelhança do Criador. Maurício, infelizmente, ia de mal a pior. Até que um dia foi levado para a casa transitória de repouso. Lá o tratamento era diferente. Na primeira semana de internação recebeu 21 eletrochoques na chocolateira. Eles lhe causavam, invariavelmente, perda de consciência e o induzia às convulsões. Mas o pior não ficava nisso. O pior viria depois que o pobre coitado deixasse a instituição. Seus inimigos teriam motivos de sobejo para maltrata-lo, insinuando as verdades doridas e fustigantes.

V

Quintino, que já não sabia mais como auxiliar o amigo, ao se recuparar do baque, motivado pelas notícias da sua internação, tratou de alerta-lo sobre as práticas que o danaram. E assim como quem não quer nada, em visita à sua casa, num certo dia, deixou com sua mãe um exemplar do livro "ESPIRITISMO E LOUCURA" de Xavier de Oliveira. Edição de Coelho Branco Filho. Rua do Lavradio n. 60 - Rio de Janeiro. Brasil. 1931. Pelo menos saberiam com o que estavam lidando. Nas páginas centrais um bilhete com letras esmeradas rezava: "Serve tudo isso para que, no futuro, não digam que eu não avisei".

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