QUEM ME AMA?
Adlai Hoartmann

eu fecho os olhos. então eu os abro, tão logo a sensação ruim passe. e lá estou eu, a mesma. eu fecho os olhos. eu abro os olhos. ainda estou lá, no espelho, a mesma, embaçado, encharcada, o mesmo nariz pequeno, a mesma boca pequena, os mesmos olhos pequenos que me entregam todos os dias, delatores, farsantes, frios, duas pedras de gelo derretendo, derretendo, derretendo, tenho 14 anos, parece que tenho menos, nos melhores dias meu cabelo aparenta ser liso, como propaganda de shampoo, em outros nem tanto, meus cabelos desgrenhados, náufraga, nos melhores dias sou até bonita, no resto do ano nem tanto, as pessoas elogiam minha força, minha inteligência, minha felicidade, tenho espinhas, as das costas são as que mais odeio, porque são as que as outras pessoas podem observar sem que eu possa perceber, vez ou outra, eu fecho os olhos. eu abro os olhos, a mesma, chego a sorrir, desistindo, tenho dessas coisas, suo as axilas, não sou princesa, princesas não tem síndrome do cólon irritável, princesas não constipam, meu pai me chama de princesa, sou a princesa do reino de papai, uso anágua, uso coroa, eu fecho os olhos, eu abro os olhos, me roubaram a coroa que ganhei quando nasci, eu fecho os olhos esperando que a sensação ruim passe, o ginecologista me disse que é dismenorréia, que é normal, Gisele Bundchen chorou nas primeiras vezes, meu consolo desagradável, me incomoda esses esforços sobrenaturais para parecer natural, meu útero um vulcão em erupção, tenho dismenorréia, às vezes tomo anticoncepcionais, as vezes não, santo buscopan das nossas dores, dor é transfiguração, sofrimento é epifânia, a cada espasmo uma pista de Deus, eu fecho os olhos, eu os abro, está lá, a mesma menina feia.

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