O COLECIONADOR
Ana Luísa Peluso

A flor de Eulália não me tocou. Nutri total indiferença por ela, desde que coloquei meus olhos sobre o quadro. Era tanto que tinha escutado a respeito do "artístico objeto", que pensei que algo fenomenal me aguardava. Qual nada. Nem o corriqueiro e ocioso "lugar comum" pairava sobre a tela. Nada. Apenas uma flor quase infantil, como que feita às pressas pelas mãos miúdas da prima. O que havia no quadro, a não ser cores em estado selvagem? Era, inclusive, uma excelente definição para quem era obrigada a ouvir que o borrão de Eulália era obra de arte. E isso, pela família toda. Até pelo avô.

Pois pra mim, não passa de um borrão colorido... Não vejo uma flor sequer na tela.

E fechei a cara, já esperando o muxoxo da família reprovando minha atitude. Eu costumava ser sincero. Nunca diria que achei bonito ou mesmo criativo aquilo que não achei. E definitivamente aquele quadro não dizia nada. Meu avô, então, discorreu sobre o novo movimento artístico e a influência, que ele, indubitavelmente, exercia sobre as obras atuais.

Pois digo que odeio, em igual forma, a recusa da autoria!!! — bradei decidido. — O quadro de Eulália é apenas mais uma cópia dos milhares que devem estar sendo produzidos, pelo mundo afora, nesse mesmo instante talvez. E isso tira a autoria de qualquer pessoa que se diga criadora, ainda que não seja.

E virei nos pés, voltando para meu quarto, deixando para trás alguns membros da família estupefatos e o restante de cara amarrada. Eu era pura verdade naqueles tempos, como se ela existisse. Mas lembro que me orgulhava disso.

Pra mim, tanto fazia o quadro de Eulália, para dizer a verdade. Até então tudo o que eu podia conceber como arte não nascia pelas mãos dos homens. 

Eu certamente perderia as férias como castigo pelos ditos na sala, e com isso restringiria meu período de descanso escolar na caça às borboletas. Não era à toa que minha coleção aumentava! Eram tantos os "desaforos", que segundo vovô, eu cometia, que passara a maior parte das férias da minha vida na casa de tia Dulce, no campo. E tudo o que havia por lá eram borboletas. A praia mais uma vez ficaria sem minha visita, mas vovô levaria o quadro de Eulália para compor a ceia de natal, naturalmente.

Arrumei minha bagagem e fui me despedir de tia Lucia, que era minha mãe, na falta da uma. Meus pais haviam morrido quando eu era ainda muito pequeno e tia Lucia foi quem me criou. 

Ela me olhou friamente, como se dissesse que seria obrigada a passar o natal longe de mim, por minha culpa. Era a mais pura verdade que compartilhávamos em quase segredo.

Não me olhe assim, tia Lucia. O quadro de Eulália é um enrosco mesmo! — e lhe dei um beijo nas bochechas coradas. 

Ela tentou manter a pose fria, mas acabou me abraçando e me fazendo todas as recomendações de bom comportamento durante a estadia na casa de tia Dulce. Eu ouvi tudo com a máxima atenção. Mas esqueci em seguida, confesso, atraído que estava pela caça às borboletas!

Vovô não se despediu, bem como o restante da família, com exceção de Eulália, que veio até a porta e me deu um longo abraço, me dizendo baixinho no ouvido:

— Não fica chateado não... Aquilo é apenas um borrão; você está certo! Apesar de eu gostar muito dele! Mas isso não tem o menor problema. E de mais a mais, não pretendo mesmo me tornar pintora, primo! Sossegue seu coração! — sorriu ternamente.

Olhando pela janela do trem, pensei que tudo o que eu teria para fazer nesse verão seria caçar borboletas, nadar no rio e bater bilboquê. Minha coleção de borboletas era apreciada pela família inteira e, talvez, por isso mesmo os afetos não rendiam, já que eu costumava receber elogios com facilidade, mas era difícil tirá-los de mim.

Fui bem recebido pelos tios ao chegar no interior. Nem me perguntaram porque lá estava eu novamente. Já intuíam que seria pelo mesmo motivo de sempre. Aquele que eles chamavam de "saliência". Perguntaram-me pela coleção de borboletas e eu disse que trouxera — claro! — e que pretendia conseguir as duas restantes. Dois espécimes raríssimos que só davam naquelas paragens do sul. Eles sorriram. Viviam me dizendo que apesar de "saliente" eu era bastante inteligente e simpático. "Um bom menino", costumava dizer tia Dulce. E ria-se a valer!

No dia seguinte, mal amanheceu e já estava eu, de cá pra lá, olhando em todos os vãos da mata que conhecia como a palma de minha mão. Foi quando dei de cara com a mais bela borboleta que vira até então! Amarela, com pequenos traços oblíquos em tom carmim, ela era linda! Identifiquei-a imediatamente, ao lembrar-me da foto do livro que eu usava para minhas consultas: era uma verdadeira "Parides ascanius"! Agora me faltava apenas uma! E depois... 

Bem depois teria de sair pelo mundo atrás de outros espécimes em outros vilarejos.

A vaidade me comia a alma, e assim que retornei a casa de tia Dulce, ao anoitecer, telefonei à tia Lucia, na casa de praia! Ela mostrou-se feliz, mas disse que não poderia demorar-se muito ao telefone. Ninguém poderia falar comigo durante as férias e eu também estava proibido de telefonar. Eram ordens de vovô. Antes de desligar, pedi a ela que transmitisse a notícia entre os parentes: agora me faltava apenas um espécime para compor a primeira parte de minha coleção! Vovô teria de me dar indulto!, ainda bradei, rindo ao telefone.

Os dias seguintes se passaram sem novidades. Não encontrei mais borboleta alguma. Nem a raríssima e última, nem outros espécimes que eu já possuía. A mata parecia vazia de borboletas e tudo o que sobrava para fazer naqueles dias mornos e lentos era bater bilboquê e nadar no riacho. Quando dava sorte, a criançada do outro lado do vilarejo aparecia e eu podia contar minhas aventuras pela vida. Costumavam ficar extasiadas! Me viam como um líder, um herói, eu sentia. Mas nos últimos dias, não sei se pelo fato do natal se aproximar e o trabalho nas casas aumentar, as compras que todos se punham a fazer durarem mais tempo que o necessário, ninguém aparecia no lago. 

Restava o bilboquê, que eu batia para enganar o tempo. Foi quando tia Dulce me chamou. Fazia os últimos preparativos para a ceia de natal e me pediu que buscasse ovos no galinheiro. Eram para o pudim que seria servido como sobremesa, explicou-me. 

Eu andava meio desanimado, mas costumava ser prestativo. Mesmo assim, sem muita vontade, desci até o galinheiro com a cesta dos ovos em uma das mãos e o bilboquê na outra. Foi quando a vi. A negra! Negra com filetes azuis nas laterais das asas e manchas circulares azuis e vermelhas no centro delas! Era um sonho! Não me continha! Mas me lembrei que estava sem a rede. Porque eu pegara o maldito bilboquê em vez da rede? Filosofar não resolveria meu problema. Abri a cesta de ovos e devagarzinho me acerquei da borboleta negra. Imóvel, parecia que aguardava pela minha captura. E num capote do cesto, a peguei!

Eu quase a tinha em minhas mãos. Agora me faltava apenas retirá-la dali. 

Mas como faria isso sozinho? 

Soltá-la era algo que eu sequer cogitava. Então pensei em me servir da camisa que eu usava como tampa para o cesto. Segurando cuidadosamente o cesto contra a parede com uma das mãos, desabotoei a blusa com a outra e consegui despir um dos braços.

Em seguida, segurei no cesto com a outra mão e pendi o ombro direito para que a camisa caísse. Agarrei-a pelos dedos. Eu suava inteiro.

Não fora tão difícil quanto eu pensava e num momento o cesto estava vedado pelo tecido da camisa. Voltei pra casa triunfante e rumei para meu quarto pela porta da frente, para que tia Dulce não desse pela falta dos ovos, que eu ainda tencionava buscar. Assim que entrei no quarto, a primeira coisa que fiz foi cerrar as janelas bem cerradas. E trancar a porta à chave. Tudo o que eu sempre sonhara estava se concretizando à minha frente e logo teria meios de provar a vovô que podia seguir rumo sozinho pelo mundo afora, atrás de outros espécimes. E minha vida seria uma eterna aventura, mesmo que ficasse longe de Eulália e mesmo que Eulália continuasse a pintar flores sem nexo. No fundo, não deixava de ser natureza morta. Morta por decisão dela mesma.

Levantei o tecido da blusa com cuidado e lá estava ela! A negra "Mimoides Lysithous harrisianus". E minha coleção, enfim, completa!

Não tencionava dizer nada a ninguém até a volta para casa (depois das férias forçadas na casa de tia Dulce, que no final das contas haviam sido bastante proveitosas). 

Como não tinha muito tempo, tratei de colocá-la numa caixa de sapatos vazia e deixar o trabalho para mais tarde.

Entreguei os ovos para tia Dulce e fui bater bilboquê na varanda. Sentia-me um pouco triste por passar o natal longe de tia Lucia e Eulália. A compreensão de Eulália tornava minha vida mais fácil e a doçura de minha tia Lucia era a certeza da minha permanência naquela casa que convencionei de chamar de minha, mas na verdade era de meus avós. Sabia que todos haveriam de sentirem-se incrédulos quando vissem minha coleção completa! Na verdade, nenhum deles chegou a acreditar que eu pudesse completar a coleção deixada por meu pai. Agora teriam certeza de que eu era capaz de realizar algo sozinho. E que podia ser bom colecionador de borboletas, tanto quanto ele havia sido no passado. Mas eu queria ir mais longe, por isso necessitava da aprovação de vovô. Sem seu aval nunca deixaria nosso país, para encontrar outros espécimes de borboletas raras.

Agora teria como, pensava sorridente!

A noite de natal transcorreu calma e tivemos o casal Ortega como convidados. Após a ceia, a sobremesa e a conversa (como sempre) girando em torno de arte, me senti um bocado entediado. Discutiam entre si seus pontos de vista e vez ou outra me faziam alguma pergunta específica. Confesso que arte não era meu assunto predileto e fingindo cansaço, pedi para deitar-me. Todos me acharam bastante abatido no inicio da noite e sequer questionaram minha decisão.

— Deite-se, sim, querido! E descanse bastante. — Tia Dulce falou com suavidade. 

Despedi-me dela, do tio e do casal Ortega que me desejou sorte com a última borboleta que faltava para eu terminar a coleção. Já era do conhecimento de todos que eu colecionava borboletas, até porque me interessara pelo esporte durante minhas primeiras estadias na casa de tia Dulce, quando ainda contava sete anos de idade. 

Certamente o tio comentara com o Sr. Ortega que me faltava uma, a mais rara. Ele não sabia que eu já a tinha praticamente em minhas mãos.

Depois de beijar tia Dulce e a senhora Ortega nas mãos, fui direto para meu quarto. 

Entrei, acendi os abajures e abri as janelas. Me recostei na cama e senti saudade de Eulália. O que estaria ela fazendo à uma hora dessas? Fatalmente seria o centro das atenções devido ao quadro que vovô mostraria a todos os convidados, exaltando as qualidades artísticas da neta em contraponto à falta das mesmas no neto. No caso, eu.

Olhar a lua lá fora sem pensar em boas coisas era impossível e a melhor delas estava guardada no meu armário, dentro da caixa de sapatos. Logo estaria estampada em meu álbum. Lembrei-me de Eulália filosofando ao pé da cama, enquanto eu fazia minhas malas (e guardava entre a bagagem meu álbum de borboletas) para seguir viagem:

— Você se diz contra a arte como forma de expressão; nunca tentou entendê-la, e, no entanto coleciona borboletas empaladas! Não percebe que se não faz arte, perde a autoria para Deus da mesma forma. Ou pior, para algum inimigo de Deus, já que Ele as concebeu livres para a vida enquanto você as aprisiona, mortas?

— Ora, não diga bobagens! — retruquei. Tudo o que me liga à arte é a indiferença com que a trato. Arte não serve pra nada, Eulália.

— E borboletas empaladas, servem para quê? — a prima insistiu.

— Borboletas empaladas servem como prova de que posso ser alguém e que posso chegar a algum lugar. Nada que você consiga compreender, se me permite a sinceridade. — sorri e fechei a mala bruscamente.

Era muito gozado lembrar-me de tudo aquilo justamente agora que estava tão próximo de meus sonhos se realizarem. Estiquei meu corpo na cama e após vestir roupas mais leves, me encaminhei para janelas. Elas não fechavam. O calor havia estufado a madeira a ponto das folhas da janela não se unirem totalmente. Nenhuma delas se encaixava com precisão em seus batentes ou entre si. Pequenas frestas permaneciam visíveis em todas elas, mesmo depois de forçar ao máximo cada uma das folhas contra mim. O jeito seria fazer o trabalho rapidamente, até porque a borboleta estava há tantas horas na caixa de papelão, que devia estar sem sentidos. Peguei a caixa com cuidado e chacoalhei levemente. Dava pra ouvir o ruído do pequeno corpo do inseto indo e vindo de um lado pra outro. Coloquei a caixa em cima da cama e abri com vagar, até enxergar a borboleta dobrada em uma só asa, como se estivesse dormindo. Porém mal abri a caixa de todo, ela levantou vôo para o teto do quarto. Meu corpo gelou. Ela não haveria de notar as pequenas frestas da janela, já que não possuía inteligência para tal. Para dificultar ainda mais sua fuga, apaguei os abajures e rezei para que ela caísse, tonta de cansaço. Contei mentalmente cerca de cinco minutos e acendi novamente as luzes. Me levantei e uma brisa de ar fresco bateu em meu rosto. Me coloquei a procurar pela borboleta negra no mesmo instante, mas por mais que revirasse o quarto não a encontrava, viva ou morta. 

Minha intenção era passar a noite em claro até que a encontrasse. Nem que para isso precisasse caçá-la lá fora, novamente. Foi quando me dei conta que ela deveria ter fugido pela mesma fresta que permitia que correntes de ar encontrassem meu rosto cansado.Amaldiçoei-me. Eu deveria ter deixado a empreitada para o dia seguinte. Ainda me restavam quinze dias de férias e por ser ansioso tinha colocado tudo a perder. Fui dormir com o coração aos pedaços, imaginando que vovô daria muita risada, caso soubesse do acontecido. Resolvi que nunca contaria nada daquilo a ninguém. Seria apenas um segredo meu. Dormi soluçando. De madrugada, acordei com a mudança brusca na temperatura e finalmente travei as janelas, que com o frio que aparecia sempre no final do ano, murchavam e obedeciam ao primeiro puxão que se dava em cada uma das quatro.

No dia seguinte permaneci quase mudo, fato reparado pelos tios. Eu me dizia cansado e com saudade de tia Dulce e Eulália. Notei que ambos trocaram olhares e fui dar uma volta nas redondezas para passar o tempo e tentar entender o porque de aquilo ter acontecido comigo. Andando pela propriedade, me lembrei da primeira borboleta que caçara com a ajuda do tio. Ele me emprestara sua rede e me ensinara o truque de pegar borboletas. Bastava silêncio, concentração e uma receita mágica que ele dizia usar: admirar-lhes a beleza.

— As borboletas costumam ser atraídas pela vibração do amor ao belo! — dizia-me ele empolgado.

E desde então, a receita dera certo e eu sempre acabava por admirá-las ainda mais e depois, finalmente, no álbum. Faltava apenas a negra. A negra, que por pouco não estivera em minhas mãos, e diante de meus olhos para sempre...

Foi quando me aproximei das quatro janelas que serviam luz ao meu quarto e me coloquei a imaginar, por qual das janelas ela teria escapado. Agora, olhando todas fechadas, parecia-me impossível uma fuga. Aproximei-me mais. Precisava sugerir ao tio que trocasse as janelas. Além de estarem velhas, não fechavam direito quando fazia muito calor.

Nem que eu viva cem anos, vou esquecer o que me fez compreender a arte. Nem que se passem milhares de dias, vou me esquecer da plasticidade de um sonho preso em uma imagem. "Nem que eu tenha mil vidas, volto a pegar uma borboleta novamente.", pensei, abrindo mão de todos meus sonhos, diante do que via, sem poder acreditar.

Esmagada, entre as folhas da janela, se encontrava ela, a Negra. Seca pelo sol da manhã, nem daria trabalho para empalar. Fitei-a mais de uma vez. Parecia esperar novamente pela captura, imóvel que se encontrava com as asas fechadas entres os pedaços de madeiras que os homens inventaram para guardarem sua própria liberdade. Mas meus braços perderam a força no mesmo momento em que ser ergueram. Algo dentro de mim calou e de repente o quadro de Eulália fazia mais sentido que toda minha vida, mesmo sendo composto por uma flor sem nexo. De qual ponto de sua imaginação, Eulália havia tirado a imagem de uma flor que se parecia com um borrão? Quantas flores amassadas, assim como a borboleta negra estava agora, não poderiam ser confundidas com borrões?

Tudo isso cutucava minha mente no caminho de volta. Pedi aos tios que ligassem para tia Lucia, eu queria ir embora. Pela prontidão no atendimento, notei que não deveria estar com semblante de quem mente. E talvez nunca mais precisasse mentir. 

Mais tarde, o tio me deixou na estação de trem, recomendando que me alimentasse e não fosse "saliente" durante a viagem. Deu-me um longo abraço, antes do apito anunciar a partida. Pressentia que eu não retornaria.

Três semanas depois recebia tia Lucia, Eulália e todo o restante da família de seu retorno das férias na praia. Eu, que havia chegado bem antes, tivera tempo de refletir sobre tudo o que ocorrera naquele natal.

"Eulália pintou duas novas telas!", anunciou o avô logo na chegada. Ele também queria ver minha coleção de borboletas. Soubera que me faltava apenas uma para completá-la e queria saber se eu havia obtido êxito.

— Não, meu avô, não consegui. E paro minha coleção por aqui. Parece-me que essa ultima e rara borboleta está em extinção. Não encontrei nem uma para contar história.

Meu avô me olhou como se já esperasse por aquele resultado. O neto não lhe daria alegria alguma, como previra. Resmungou algo e foi para seu quarto guardar as bagagens.

Tia Lucia acompanhada de Eulália me perguntou os detalhes das férias e o que eu achara do casal Ortega. Respondi a tudo com um sorriso nos lábios. Em seguida me dirigi a Eulália, pedindo para ver suas novas criações. Ela estranhou minha atitude, mas sorriu.

— Você querendo ver minhas pinturas, primo?! Isso, ou muito me assusta ou muito me honra! Em todo caso, uma delas fiz inspirada em você. Venha até o quarto que lhe mostrarei.

Eulália abriu a caixa de papelão que lhe servia de transporte para as telas e me mostrou em primeiro lugar uma que mostravam casarios. Era o mesmo estilo "borrão" de pintura que Eulália chamava de arte. Mas eu já pensava que quem me garantiria que alguém não pudesse ver casas na forma que se apresentavam na telas de Eulália em algum lugar do mundo?

— Interessante! — comentei — De onde tirou inspiração para compor a obra?

— Das novas casas que estão sendo construídas no bairro novo, lembra-se? Já estão quase terminadas.

Apesar de fazer algum tempo que eu não aparecia na casa de praia, me recordei no mesmo instante das novas casas que estavam sendo construídas no bairro. Todas iguais firmavam a existência do proletariado crescente em torno da empresa de vovô.

— Agora, feche os olhos! Quero que veja a que fiz para você!

Obedeci e ao abrir os olhos quando a prima terminou de contar três, minha respiração se susteve por instantes. Tratava-se de uma borboleta esmagada, ou "no estilo artístico de Eulália", pousada sobre uma flor, como ela me explicava, gesticulando, enquanto descrevia a sensação de imaginar uma borboleta pousada contra a luz do dia, com suas asas soltas a tremer diante ao ar que passava fresco por entre elas.

Abaixei a cabeça. Eulália era uma artista, não restava dúvidas. E apenas agora entendia o porque dos artistas às vezes, pintarem borrões. Teriam medo, eles, de verem a dura realidade por trás de suas visões ditas inspiradas?

Eu nunca soube responder.

No jantar, ouvi de vovô dizer que Eulália seria uma grande artista porque amava a arte mais do que a si mesma. Dei-me conta, então que não amava as borboletas mais do que a mim mesmo ou o suficiente para observá-las sem a perfeição que eu sonhava. 

No dia seguinte queimei o álbum onde as guardara por anos, agora quase completo. Era a única herança deixada por meu pai, mas fiz o que tinha de ser feito sem remorso ou auto-piedade. Eu, que ainda não aprendera amar borboletas o suficiente para completar a coleção com uma delas aparecendo esmagada na última pagina, era uma mistura de reflexão e entusiasmo. Haveria algo novo a aprender em seguida na vida, eu notaria logo. Mas não era nisso que pensava, enquanto observava as chamas crepitando todas as cores que eu imobilizei em vão, naquele álbum, por anos sem me dar o privilégio de prestar atenção aos seus movimentos mais do que à suas imagens.

Era apenas em Eulália que eu pensava naquele momento que me pareceu tão longo, mas era apenas o retrato rápido do amor que eu começava a descobrir, existia de verdade.

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