GRINGA
Ana Terra

Hoje eu te senti triste, desanimada. Não quis comer. Seu toco (rabo) não se mexeu nenhuma vez. Só deitada, com olhos caídos.

Eu também estou um pouco triste. Pode ser este o motivo de seu comportamento. Nó duas presas dentro de casa, sem nada para fazer, em pleno Dia dos Mortos. 

Num impulso (irresponsável, reconheço), abri o portão da rua e te soltei. Primeiro você me olhou espantada, mas dei minha autorização. Vá. 

Havia chovido. As calçadas e as árvores estavam úmidas. Os pequenos jardins das casas vizinhas exalavam cheiro de grama molhada. 

Faróis de carros e ônibus nos cegavam com o reflexo de seus faróis no chão molhado. 

Mas sua alegria me contagiou. Deixei você livre. 

Negra. Linda. De andar desengonçado, dentes enormes espantando as poucas pessoas que estavam na rua, que só conseguiam enxergar seu tamanho descomunal e a ferocidade característica de sua raça. E a beleza de seus olhos negros? A delicadeza? A ternura? Ninguém via.

Deixei você muitos metros além de mim. Queria te observar à distância. Vez por outra dizia seu nome e você vinha ao meu encontro para ganhar um carinho. 

E assim, ficamos por um bom tempo na rua. Respirei o ar puro. Respirei a sua liberdade. Respirei a minha liberdade.

Nossa tristeza, aos poucos foi passando. Sem perceber, eu estava sorrindo. Um sorriso de lábios fechados. 

De repente você virou uma esquina e te perdi de vista. Mas não me preocupei. Quando a avistei novamente, você estava no portão de nossa casa pedindo para entrar. Já estava satisfeita com sua "cota" de liberdade.

Conversamos com nossa linguagem própria. Você me disse que estava feliz. Eu também.

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