A CRIATURA
Claudio Alecrim Costa

Era o fim dos tempos. O céu ardia em fogo e um calor sufocante assava a todos como frangos naquela máquina de padaria. O mundo seria invadido pelo mal e toda vida e beleza do planeta sugados por um canudinho.

Sentado à mesa estava paralisado diante de uma mulher apavorante que o meu amigo Salik havia convidado para um chope. Não me lembro do seu nome. Não me lembro direito de quase nada. Estava imóvel e segurava o copo que vibrava quase esmagado por minha mão trêmula. Ele me fez o favor de arranjar duas garotas para um programa. A que estava com ele era bonita, mas a que sobrara parecia uma profecia. Estava de frente para o meu destino. Minha vida fragmentada passava diante dos meus olhos. Será que ela começaria a comer a minha mão primeiro? Fiz-me essa pergunta quando a mulher falou em tom suave:

— Você vem sempre aqui?

— Quem?

Ela sorriu e pude ver toda obra de Dante diante de mim. Principalmente sua narrativa sobre o inferno.

— Bobinho...

— Venho... Quer dizer, não!

— Eu gostei daqui...

Estava fazendo contato com uma criatura extraterrestre, conjeturei.

— Você é de onde?

Perguntei e derrubei o copo com a bebida pelo medo que me consumia a alma.

— Do interior. Sou caipira...

Sorriu novamente e achei que cairia sobre nós uma chuva de fogo.

— Eu adoro o interior... (tentei agradar)

— É tranqüilo... A cidade grande é muito assustadora!

Ela era a cidade grande. Não tinha idéia do que era um adjetivo. Falava de si própria e não se dava conta. Salik me fazia sinais obscenos e insinuava uma retirada estratégica. Poderíamos parar num cemitério e deixá-la em casa, pensei.

— Do que você gosta?

— Adoro ler... (respondi aturdido)

— Gosto de ler histórias de terror...

Meu coração fez uma pausa e no paradoxo senti que havia um sentido. Ela era de outro mundo e estava ali para me consumir. Eu estava perdido.

— Acho que esqueci algo no fogão de casa... O feijão. A casa deve estar pegando fogo...

— Calma, Afonso! (Falou Salik com escárnio peculiar)

— Sério! Pode haver vítimas... Os bombeiros devem ter chegado tarde...

— Parece emocionante! (resmungou a criatura)

— Você acha?

— Uma vez vi um prédio queimar até o fim...

Era uma mensagem. O apocalipse. Eu tinha que chamar um padre. Um exorcista.

— Tenho que ir, Salik!

— Não, você fica!

— Mas Salik...

— Senta aí e relaxa...

— Vamos dançar?

Ela me convidava para dançar. Não havia saída. Um músico melancólico tentava uns acordes e sua voz anunciava, pela morbidez, o meu fim. Adorava bares e terminaria morto num deles. Ela morderia meu pescoço e sugaria toda minha vida.

— Não sei dançar.

— Vem, eu te ensino...

— Vai, Afonso...

Salik talvez já estivesse se transformado em uma das criaturas como nos filmes. Todos ali eram monstros por dentro. Estava cercado. O próprio músico do bar cantava de maneira dissonante e fazia caras horríveis que agora explicavam tudo. Era como aquelas histórias aterrorizantes que via quando pequeno...

— Tenho que ir mesmo...

— Estraga prazer... (resmungou o meu amigo que agora era um monstro também)

— Você precisa realmente ir...?

Reticente, aquele ser não identificado, me fez uma pergunta enquanto demonstrava tamanha tristeza que pela primeira vez me fez pensar noutra possibilidade. Podia ser um ET! Isso. Alguém vindo de outro planeta a procura de contato... Era uma descoberta científica. Ficaria famoso... Havia sentimento. Eles tinham sentimento.

— Bom, eu poderia ficar mais um pouco...

— Obrigada...

Abaixou a cabeça e olhou fixamente para a mesa.

— Não fique triste... (falei tentando demonstrar que não era inimigo)

— Agora estou melhor...

— Por que? Não está se sentindo bem?

— É que gostei de você...

Estava perdido. Teria que inseminar a criatura para perpetuar a espécie que um dia dominaria o mundo. Poderia ser uma história de terror, mas algo de fraterno aos poucos se revelava. Salik estava quase sobre a sua garota. A criatura olhava para o músico e balançava a cabeça ao ritmo do violão. Quem ama o feio, bonito lhe parece, me veio o provérbio à cabeça. Continuei a observá-la, distraída e agora um pouco mais feliz com a minha decisão de ficar. Voltaria para minha casa num disco voador escutando Sophisticated Lady. 

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