TE AMO TANTO
Iosif Landau

Havia muito silêncio no apartamento, janelas fechadas, muitas sombras também, cortinas cobrindo a claridade de fora, o homem vestindo um terno escuro e amarrotado, barba de dois dias, cabelos em desalinho, repousava num sofá, não era um repouso confortável, a tensão que o dominava se refletia no rosto sulcado, no olhar quase demente, o corpo teso, rigor mortis, cadáver onde batia um coração e a mente turbilhonava desespero, os intestinos em revolta e o estômago retorcido em dor, mãos tremulas deixaram escapar o cigarro aceso sobre o tapete persa, a ponta em brasa apagou - se lenta, chamuscou um delicado filigrana, ele esperava... campainha, som delicado, do, re, mi, ele detestava ruídos metálicos, estridentes, do, re, mi, repetiu - se em intervalos de frações de segundos, não se moveu, batidas fortes... levantou-se sem esforço, seu porte atlético desmentia seu estado de prostração de há pouco, seu rosto moreno agora alegre expectativa, abriu a porta, ela entrou:

- demorou tanto, quase desisti, tá com uma cara...

- ligeira indisposição.

Dirigiu-se apressada até uma poltrona, sentou-se, cruzou as pernas:

- por que me chamou?

Ela vestia um elegante terninho, sapatos bico fino, salto agulha, bolsa de primeira, jóias finas ou bijuteria sem valor, não dava para distinguir, o cabelo preto preso num rabo de cavalo.

- quer beber algo? - não esperou pela resposta, encaminhou-se ao bar, escolheu uma garrafa, colocou a bebida em dois copos.

- não esqueceu! - falou ela, pernas cruzadas com elegância. 

- nem do seu telefone - respondeu ele de bate- pronto.

O que o atraíra fora sua mente vivaz, seu modo casual de o ignorar, naquela soirè ele se aproximara dela, e sem mesmo com as apresentações de praxe pedira seu telefone, ela o olhara com frieza: - se quer me ter é só falar com ele - dissera ao se afastar de braço dado com seu escort, moleza, o segurança tinha nome e número de todas as "senhoritas", um cinqüentinha e fim de papo, o telefonema no dia seguinte, encontro marcado... 

- me chamou por que?- insistiu. 

Seu modo brusco sempre o incomodara, está na hora, falava quando o queria fora do apartamento, nenhuma sutileza... começou a rir, ela o olhou contrariada.

- saudade - ligeiro deboche no tom de voz.

- continua o mesmo, metido a engraçado, que saco!

Ela se levantou e colocou o copo em cima da mesa de centro, dirigiu-se à porta.

- espera! - gritou ele quase em pânico.

Parou, a mão na maçaneta:

- não tenho tempo a perder, você conhece minha vida.

Colocou a mão no bolso, escolheu umas notas e as colocou na mesa junto ao copo, ela voltou, apanhou o dinheiro e o escondeu na bolsa.

- quer aqui ou no quarto? - perguntou, ainda de pé.

Ele acendeu um cigarro:

- me amou algum dia, de verdade?

Ela sentou-se de novo na poltrona, rosto impassível:

- por algum tempo, sim, gostei do seu jeito direto de abordar, macho, sem frescura, um tanto posudo, um pronto com pinta de magnata.

...vivera um inferno, fortuna esbanjada, anos de desgosto, do afastamento dos grandes centros, do refinamento da grande cidade, da cultura, das luzes no asfalto, da praia, do mar, dos amigos, perdera o contato com a civilização, do que mais amava, algo quebrara dentro dele,não escondera suas mágoas na bebida, nem tentara o caminho das drogas, se perdera no sexo desenfreado.

- sabe, nunca senti tanto prazer com alguém como com você, quase me mata.

Ela o olhou, seu rosto perdera a frieza, sorriu:

- precisava de mim, percebi logo, alguém como eu, sabe.

- foi caridade?

- sim... não, se virava bem na cama.

- foi apenas sexo?

- me teve de graça, o que queria mais?

Não respondeu, seria inútil uma discussão, era mais forte que ele, sempre fora.

- pode ir - falou calmo.

- não devolvo o dinheiro. 

Ele levantou-se, começou a caminhar pela sala, olhar baixo, ela o acompanhava com o olhar, parecia perplexa, aos poucos, quase imperceptível, um sorriso apareceu no rosto dele, corpo aprumado, retirou o paletó e o jogou num canto, a gravata seguiu o mesmo caminho, arregaçou as mangas, braços musculosos apareceram, o andar tornou-se elegante, fluido. 

- o que te deu? - perguntou ela.

Começou a falar, quase didático:

- leu o romance As Meninas de Lygia Fagundes Telles? não importa, ela conta no livro a história de um rapaz que ficava doidão quando via sua namorada tirar seus cílios postiços, ela de biquíni não lhe dizia nada...

- se quer perder seu tempo contando taras, conheço todas, não tenho tempo a perder.

- cale essa boca, te paguei, se quer saber porque te chamei, vai ter que esperar. Quando eu era rapaz, as fodas eram rápidas, apressadas num banco do carro, nem existiam motéis com camas redondas, espelhos nos tetos, filmes pornô, tirou o cabaço, casou e fim de papo, Lygia pressentira que décadas adiante surgiria a banalização do nu, do sexo fácil, daí a impotência, o enfado, a indiferença...

- pára com essa churumela - interrompeu ela - que saco!

- ...a procura do impossível - continuou o homem como se não tivesse ouvido - mulher madura já era, ter ereção era difícil, seios nada mais significavam, novas combinações, posições sexuais, no livro Erotica Universalis de Gilles Neret, tá tudo lá......

- se continuar com esse treco vai ter que pagar mais.

Parou a caminhada, retirou um maço de notas do bolso e as jogou na direção dela.

- quando te conheci eu estava impotente, nada mais despertava meu desejo, pressenti algo diferente em você, não me enganei, voltei a ser o que já fora, todos os dias, todos, nas madrugadas, nos fins da tarde, entre um freguês e outro, semanas, meses... sabia que não me amava...

- me tratou como mulher, não como objeto, senti prazer, desde o primeiro encontro, não queria te perder. 

- mas...

- sim, te tratei mal, não podia mudar, baixar a guarda, você ia me fazer sua, para sempre? não, não mesmo, portanto...

Parou na frente dela:

- acho que sabe por que te chamei.

Ela levantou-se, aproximou-se dele, o beijou no rosto.

Ele a empurrou:

- que diabo - falou ele irritado - podia ter caprichado na barba.

Ela começou a rir, levantou a saia:

- deixa de mais-mais, o que gosta está aqui e está duro.

O rosto dela perdera a suavidade, ele puxou o cabelo, jogou a peruca longe, a cabeça raspada e pálida apareceu, passou a mão com rudeza por cima das faces a sua frente, arrancou as sobrancelhas postiças, o batom misturou-se ao rímel, a maquiagem borrada, rugas profundas emoldurando a boca, as maçãs do rosto mais salientes, o nariz perdera a delicadeza, sombreado de bigode por fazer apareceu acima dos lábios carnudos, deixou a mão cair inerte, parou extasiado:

- será que dá pra tirar as lentes de contato?

Voz de barítono quebrou o silêncio:

- filho de uma puta, me deixou um horror, vai ter que pagar o dobro.

- te amo tanto!

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